Sou mulher. Suburbana. Mas ainda tô na vantagem: sou branca

Ontem ouvi algo que me cativou a escrever sobre um tema que sempre me toca, mas que nunca me sinto apta a escrever sobre ele: racismo. Obviamente nunca sofri racismo. Sou branca. Por isso, decidi escrever partindo do ponto de vista que me cabe melhor, o de opressora.

Enviado por Camila Castanho Miranda via Guest Post para o Portal Geledés

A primeira coisa que preciso dizer é que assumir o lugar do opressor não é ser uma pessoa má ou algo assim. É simplesmente entender minha posição histórica na sociedade. A segunda coisa importante aqui é que, dependendo da circunstância e aprofundamento da árvore genealógica, posso não ser branca. Mas não é o que minha pele e o meu cabelo dizem pra sociedade. Então, ao se falar de racismo, sou branca sim. Posso ser bege, se preferirem. Não faz diferença, não sou negra. Nunca fui oprimida pela minha imagem.

Não sei vocês, mas eu demorei muito a me dar conta de que existia racismo. É difícil notar os pequenos racismos do dia a dia quando não se sofre com eles.

Foi no pré-vestibular, já com 17 anos, que comecei a me dar conta de que algo esquisito acontecia no mundo em relação às pessoas negras. Eu tinha estudado história, sociologia, antropologia, mas foi só quando eu, pavunense, fui sair pra beber no Leblon e na Gávea, que eu entendi. Eu nunca tinha ido a um lugar branco. Eu me sentia muito constrangida em estar ali, porque em geral as pessoas me olhavam muito esquisito. Eu me vestia diferente, me comportava diferente, eu falava num tom de voz diferente. Mas eu circulava com liberdade. Eu tinha amigos ali.

Eu estava inserida de alguma forma. E comecei a perceber que para além das diferenças culturais, estruturais e geográficas, a maior diferença entre Pavuna e Leblon era a população negra. Quase não havia negros circulando pelos espaços noturnos da zona sul. Depois que entendi isso, lembrei de todas as circunstâncias em que fui a única branca ao longo da vida. E em como fui privilegiada por isso. Era nos pormenores, nas pequenas vantagens do dia-a-dia, que eu começava a descobrir o racismo.

Eu representei a opressão branca todas as vezes em que alguém me disse: -“Nossa, você é tão bonita, tão inteligente, tão branquinha…nem parece que mora na Pavuna…”. E eu escutei isso MUITAS vezes.

Eu representei a opressão branca quando um homem negro me disse que realizou o sonho da vida dele ficando comigo, porque a mãe dele, negra, sempre dizia pra ele arrumar uma namorada branca, porque mulher preta não presta.

Eu representei a opressão branca cada vez que me disseram que eu sambo que nem preta. E da mesma maneira, quando eu era adolescente e obrigava uma amiga negra a sambar, dizendo que se eu sabia ela era obrigada a saber.

Eu representei a opressão branca todas as vezes em que fui escolhida pra representar a mãe de Jesus nas pecinhas da infância, quando me diziam que eu parecia uma princesa ou uma boneca. As minhas amiguinhas negras nunca eram escolhidas e não ouviam as mesmas coisas que eu. E não me venham com o papo de que Maria era branca. Se pensou isso para agora.

Eu representei a opressão branca quando, numa boate dessas do Centro do Rio, conheci um babaquinha do Leblon que, ao saber onde eu morava, veio com o seguinte papo: -“Nossa, eu sempre quis conhecer mais a fundo uma mulher suburbana. São mais quentes, né? E você é uma favelada branca, é linda!”. Agora imaginem o que ele não teria dito se eu fosse uma mulher negra. Isso SE ele chegasse na mulher negra.

Eu representei a opressão branca todas as vezes em que eu disse que só queria saber de pegar negão. Parei com isso antes das reflexões acadêmicas, quando a própria experiência me mostrou que há homens com pegada e sem pegada, que há pessoas que se afinam com você no sexo e outras não, e que o tamanho do pau de um homem não tem vínculo com a cor de pele, e que inclusive isso pode ser um fator do sexo, mas é apenas um dentre muitos.

Eu representei a opressão branca todas as vezes em que alguém se surpreendeu por eu ser filha de santo num terreiro, dizendo coisas como: – “Nooossa, mas tão instruída!” ou “Noooossa, mas tão branquinha!” ou “Noooossa, mas você, tão gente boa?”.

Eu representei a opressão branca todas as vezes em que atravessei a rua quando um jovem negro passava na calçada. Um dia eu parei de fazer isso. Simplesmente parei, e nunca fui assaltada.

Essa listinha poderia ser infinita. Mas vou parar por aqui. Agora, algumas coisas importantes:

  • Eu costumo me sentir melhor em ambientes onde reina a cultura negra. Isso tem a ver com uma série de questões que vão desde onde fui criada (todo mundo se sente bem quando se sente em casa) a gostos, prazeres, escolhas e sentimentos. Isso não faz de mim negra.
  • Tem gente boa branca, gente escrota branca, gente boa negra, gente escrota negra, e por aí vai.
  • Eu sambo. E não sambo que nem preta. Eu sambo como eu sambo, porque gosto de sambar. E as mulheres negras não são obrigadas a gostar.
  • A Umbanda não é uma religião branca porque tem brancos na Umbanda, ou porque usa imagens de santos brancos. E eu não sou negra por causa da minha religião.
  • O fato de eu ser oprimida em outras situações – mulher, suburbana, umbandista – não me faz mais oprimida que um homem negro rico e católico. As opressões são diferentes.
  • Este texto também fala sobre machismo. Mas o feminismo da mulher branca é diferente do feminismo da mulher negra. A mulher negra ganha o salário mais baixo de todos, é pouquíssimo representada nas novelas, contos de fadas e capas de revista e é consequentemente menos desejada pelos homens, que não só são machistas, como também racistas – sejam brancos ou negros.
  • Minha alma não é branca. Minha alma também não é negra. Eu não faço ideia de qual é a cor da minha alma.
  • Nada disso visa segregar ninguém, nem impedir que as pessoas se relacionem. A segregação existe. E reconhecê-la é ajudar a desconstruí-la.

Enfim, é esse o papo. Se eu tô cansada, imagina quem tá na desvantagem?

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