Taís Araújo fala sobre feminismo e luta contra racismo: ‘Eu me tornei negra”

Os olhos de Taís Araújo, no dia da sessão de fotos deste ensaio de capa, precisaram de algodão com água gelada para atenuar o inchaço causado pelas lágrimas da noite anterior. A atriz, de 38 anos, assistira à “Moonlight”, filme vencedor do Oscar 2017, e ficara emocionada com a história de um jovem negro gay que cresce numa comunidade pobre dos Estados Unidos em meio às drogas, crimes e conflitos com a sexualidade.

por Talita Duvanel no O Globo

Foto: Nana Moraes

À primeira vista, ela e Chiron, personagem principal do longa, compartilham apenas o fato de serem negros. A carioca foi criada na Barra da Tijuca, e não num subúrbio miserável de Miami. Muito menos viveu com uma mãe solteira viciada em crack — seu pai é economista, a mãe, pedagoga, ambos muito presentes em sua criação. Terem a mesma cor de pele, no entanto, é o suficiente para Taís enxergar na ficção o âmago das questões que tanto debate e das quais tem colocado sua arte a favor: o papel do negro e da mulher na sociedade.

— Independentemente da origem, existe um sofrimento que é nosso. Meu, que fui criada na Barra, e da menina da favela da Maré. Ela tem uma vida muito mais difícil, claro. Há um abismo entre nós, mas nos encontramos na dor — diz Taís, que posou para Nana Moraes em meio a imagens históricas da luta feminista.

‘EU ME TORNEI NEGRA’

Taís e o marido, o ator Lázaro Ramos, são considerados um dos mais bem-sucedidos e engajados casais do show business brasileiro. A agenda reflete isso: os dois rodam o país com a peça “O topo da montanha” e estrelam a elogiada série “Mister Brau”, da TV Globo. Ela ainda compõe o elenco do programa “Saia justa”, do GNT, filma um longa sobre Pixinguinha e é embaixadora brasileira de uma das maiores marcas de beleza no mundo, a francesa L’Oréal.

Com pouco mais de 20 anos de carreira (começou aos 16, em “Tocaia Grande”, na TV Manchete), Taís hoje pode escolher trabalhos e, pela lista de produções atuais, percebe-se que as discussões sociais são um incentivo a mais para fazê-la sair de casa. Quem assistiu a “O topo da montanha” (ela promete voltar ao Rio com o espetáculo até o fim do ano), por exemplo, vê o casal encenando o último dia da vida de Martin Luther King, um dos maiores nomes da campanha pelos direitos civis nos EUA, assassinado em 1968, no auge da luta. Na comédia “Mister Brau”, abordam a ascensão social de um casal de negros:

— Representamos uma parcela do Brasil que é muito subjugada o tempo inteiro. É importante para nós, como população negra, estarmos num lugar de prestígio — afirma a atriz, para quem toda essa consciência veio a partir do “reencontro com sua ancestralidade”.

— Eu me tornei negra. A gente nasce neste país para tentar ser outra coisa, o que somos não é aceito. Não vê as meninas alisando o cabelo? — diz Taís, que por muito tempo fez relaxamento nos fios, sim, mas hoje guarda um e-book no celular com a obra “Torna-se negro”, da psicanalista baiana Neusa Santos Souza. — Passei a olhar minha história com senso crítico e sei que tudo me foi contado de maneira distorcida.

REDES SOCIAIS COMO PLATAFORMA

Apesar dos vários trabalhos em que tenta passar mensagens de caráter político, as redes sociais são mesmo o grande espaço para as causas que Taís Araújo defende, sem os limites de roteiros ou contratos. Com 3,5 milhões de seguidores no Instagram e a descrição “a pessoa sai do Méier, mas o Méier não sai da pessoa” (a atriz nasceu na Zona Norte, mas foi criada na Zona Oeste), ela gosta de fazer jus ao nome escolhido para a conta: @taisdeverdade.

Ali a atriz mistura desabafos e piadas sobre si mesma, fala sobre assuntos sérios e também faz, como a grande maioria dos artistas influentes, ações de marketing. É de verdade mesmo, apesar de o nome ter sido escolhido mais pelo fato de achar @TaisAraujoOficial “cafona”.

— Quando criei o Instagram, pensei: o que representa um artista? Antigamente, praticava-se o distanciamento. Isso caducou. A Internet chegou para juntar todo mundo.

É por causa das conexões estabelecidas pelas redes sociais que ela acredita haver uma discussão mais aprofundada sobre as questões raciais e de gênero no Brasil.

— Há mais vozes porque a ferida está exposta. Fico encantada quando ouço um branco falar de “privilégio branco”. Isso significa que a pessoa entendeu que cor da pele nesse país é patrimônio. Quem é branco sai na frente — diz ela, que em 2015 foi alvo de comentários racistas na Internet, o que desencadeou o movimento #SomosTodosTaísAraújo.

Na época, ela levou o caso à Delegacia de Repressão a Crimes de Informática e desabafou: “não vou me intimidar, tampouco abaixar a cabeça”.

AVÓ FEMINISTA

Sem nenhuma preocupação em relação a qualquer julgamento, Taís se diz feminista com orgulho.

— Existe um pudor, mas as coisas têm nomes para serem ditos. Sou feminista e acho que sempre fui — garante ela, caso alguém venha falar, de forma simplista, que o assunto não passa de “modinha”.

Essa consciência é fruto das atitudes da avó, Maria Antônia, que morreu com 37 anos, antes mesmo de Taís nascer:

— Ela era mãe de santo, uma mulher tão forte que até hoje falo dela como se a tivesse conhecido. Tanto que o nome da minha filha foi uma homenagem. Minha avó foi uma superfeminista, mas tenho certeza de que nem sabia que essa palavra existia.

A mãe de Taís, que vive quebrando galhos na criação dos netos João, 5 anos, e Maria Antônia, de 2, também teve e tem uma função muito além da de avó participativa:

— Ela falava para mim e minha irmã: “vocês não podem depender de homem”. Nossa criação foi em cima da independência — conta.

Na família que formou com Lázaro, os direitos iguais começaram logo no cartório.

— Meu nome é Taís Bianca Gama de Araújo Ramos. O dele? Luís Lázaro Sacramento de Araújo Ramos. Eu botei o Ramos, ele botou o Araújo. Não tava aqui para mudar documento sozinha (risos).

Outra boa discussão para ela é o aborto, mas Taís abomina colocar qualquer traço de religião no meio da história.

— Acho fácil dizer que é pecado quando você não vai cuidar. É uma hipocrisia — diz ela, que é batizada, fã do papa Francisco e devota de Santo Antônio, mas também acredita na força dos orixás. — O meu é Oxum Apará.

SUCESSO E QUESTÕES

Não é de hoje que Taís encara discussões sobre racismo e feminismo. Recentemente, ela postou no Instagram a imagem de uma entrevista dada na época da novela “Xica da Silva”, em que falava sobre o tema, mesmo antes de fazer o total resgate de sua história. “Se for necessário, passarei mais 20 anos falando sobre isso”, escreveu.

Naquele tempo, a atriz ainda fazia relaxamento nos fios naturalmente crespos. Foi o cabelo, aliás, que a levou ao salão comandado pela ex-modelo Monique Evans, que a aconselhou a fazer um book. Taís foi do salão para uma agência, de lá para São Paulo. Se tivesse investido mais, Nova York estaria no mapa.

— John Casablancas (fundador da Elite Models, que fez deslanchar as carreiras de Gisele Bündchen e Naomi Campbell) me fez uma proposta sobre Nova York. Tenho apenas 1m63cm, mas ele disse que eu seria modelo comercial. Aí falei: “mas quero ser atriz”. Burra, né? Dava para fazer as duas coisas. Podia ter ido e ficado rica.

Se os planos de Casablancas tivessem dado certo, certamente não teríamos conhecido Taís como “Xica da Silva”. Em seu segundo trabalho como atriz na TV, ela encarnou logo uma das mulheres mais famosas da história do Brasil:

— Quando o Walter Avancini me convidou, eu tinha 17 anos e liguei para o meu pai receosa com o fato de ter que ficar pelada. Ele só disse: “minha filha, não tem nada a ver uma coisa com a outra. Você não vai perder sua dignidade por isso”.

Ao completar 18 anos, no meio da trama, Taís mostrou os seios para o Brasil inteiro, mas, antes disso, cortou os longos cabelos que cultivava com afinco desde os tempos do salão de Monique Evans. Quando Xica acabou, seguiu os conselhos do pai novamente e foi estudar Jornalismo. Hoje, ela se pergunta para quê serviu o diploma, mas ainda quer frequentar, de novo, a universidade:

— Meu sonho mesmo é fazer um curso universitário de Teatro. As pessoas falam que sou maluca, mas acho que ali é o único ambiente que vai me dar a chance de passar por todos os gêneros, me permitir errar sem estar preocupada se o Brasil está olhando para mim, se estou fazendo cagada — confessa a atriz.

O olhar do outro influencia, sim, os passos de Taís. Ela pode até parecer bem-sucedida na carreira, nas finanças, e ser mãe de uma família saudável, mas é como qualquer mulher, ou melhor, qualquer ser humano, “cheia de questões e problemas”:

— Nunca acreditei em mim, sofro de insegurança o tempo inteiro. Sinto que estou sempre devendo. É dolorido, mas também é divertido pois isso faz com que não me leve a sério. E acho que não se levar a sério é um aprendizado importante, porque a vida esta aí para surpreender a gente. É uma montanha-russa, meu amor.

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