Tempo de festas , tempo de racismo

Ano novo. Na praia com dois amigos brancos, cantando e tocando violão. Um estranho branco se aproxima, pedindo para integrar a roda, entusiasmado com a animação do trio. Pergunta os nomes. Fulano, prazer.

Por Fabio Ando Filho Do Outra Coluna

Ciclano, prazer. Ah, você eu não vou guardar o nome mesmo, posso te chamar de japa? Você vai ser O Japa, ok? Certamente pelo menos um dos meus amigos percebera e se incomodara, mas como eu não havia reagido, resolveram também não se manifestar a respeito. E então, em um acordo tácito, deixamos quieto e resolvemos seguir a festividade.

No dia seguinte, comentamos com a outra amiga que viajava conosco sobre a noite anterior, sobre como uma personagem bizarra tinha nos abordado e falado tanta merda, mas nos restringimos a contar sobre o fato dele ser milico, de fazer um beatbox estranho e de cantar como o Rogério Flausino.

Resolvi deixar o fato passar, assim como faço na maioria das vezes quase todos os dias da minha vida, quando interajo com pessoas brancas desconhecidas. Mas nesta semana pós-recesso, tive a oportunidade de ler dois artigos que, diferentemente, resolveram falar. Tomei consciência de que a minha história não era única, não havia sido a primeira vez comigo – nem de longe – e não seria eu a única pessoa.

“Há algo de ritual no nosso cotidiano, um fantasma que fingimos não ver para não ficarmos constrangidos pela sua constante presença. Denunciar esse fantasma deve ser nossa tarefa, pois, sabemos que mesmo nos momentos mais corruptos da história, a baixeza tem restrições. Mas que restrições podem existir para algo tão naturalizado por nós? Por uma baixeza tão vil como a prática do racismo e da segregação social?” (No Brasil até o Réveillon é racista, Douglas Rodrigues Barros, 05/01/2016)

O filósofo Douglas Rodrigues Barros comenta no  Blog NegroBelchior sobre a experiência de passar por uma praia privatizada pela aristocracia branca durante sua viagem de ano novo. Na mesma linha, a escritora Nicole Chung, do blog The Toast, conta sua história de natal, em um jantar com a família de seu marido branco, quando uma desconhecida branca, visita da casa, resolveu ser original e fazer aquele comentário de “vocês parecem todos iguais”. A autora conta sobre o longo processo interno de decidir se responde ou se consente, conta sobre como olhou para as companhias brancas se perguntando sobre quais daquelas pessoas teriam notado, teriam se constrangido junto a ela.

           “Eu estou desconfortável no momento, isto é – terrivelmente – certo, mas isso significa  que tenho o direito de deixar todas as outras pessoas desconfortáveis também? Eu   realmente quero forçar todas as pessoas nesta mesa a escolherem lados no debate     definitivamente impossível de vencer de “foi ou não foi racista”? […] Pela última vez, considero me defender. Somente dar voz à confusão, à raiva e à mortificação que sinto fervendo no meu estômago. Mas eu sei, no momento que me lembra incontáveis outras vezes como esta, que não sou esse tipo de pessoa. A verdade me atravessa: Eu sou a única pessoa que pode garantir que todo mundo continue se divertindo. (O que se passa na sua cabeça: Sobre festas legais e racismo eventual, Nicole Chung, 05/01/2016, tradução livre)

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Tempo de festa é tempo de racismo. Enquanto todas as outras pessoas podem esquecer de todos os seus problemas, afastar as mágoas e se afundar naquele prazer hedonista despreocupado que só os brancos sabem fazer tão bem, nós, minorias não-brancas, não conseguimos escapar daquilo que continua a nos oprimir. Temos de ser lembrados o tempo todo de porque somos diferentes, os nossos marcadores étnico-raciais continuam presentes, agindo como um filtro das interações sociais, dos relacionamentos, até – e, principalmente – das transações comerciais. O tempo de festejar, para nós, é uma eterna escolha entre esconder os fantasmas ou jogar a merda no ventilador.

Ainda sem muita propriedade, passados alguns dias do tempo de festas, comecei a aprofundar no porquê daquilo me incomodar tanto. Eu ainda não tinha processado o suficiente para perceber que esse tipo de abordagem esteve presente em todas as vezes que participei de uma interação em grupo que não fosse exclusivamente entre amigos e que contasse com a presença de pessoas brancas desconhecidas.

Ainda não sabia denominar muito bem o fenômeno estranho que me fazia passar de uma pessoa quase naturalmente expansiva para uma pessoa imediatamente quieta e reservada. Afinal, não é essa a expectativa do mundo branco? Que as pessoas asiáticas sejam reservadas? Também não sabia descrever direito por que as festas não são tão interessantes para mim, apesar de eu ser claramente festeiro.

Por que eu não tinha toda aquela vontade de conhecer pessoas novas, de flertar, de me engajar? Talvez, porque em um ambiente branco todo mundo já tenha sua opinião sobre a pessoa asiática. Talvez, porque todo mundo já tenha suas devidas explicações sobre a pessoa que você é, sobre todo o pacote de estereótipos que você carrega a priori. Não há  nada de mais interessante para se descobrir a seu respeito. E quando uma pessoa branca te aborda, você sabe que ou ela é fã de mangá ou ela carrega  um fetiche sexual estranho por pessoas da sua cor e quer te dominar de alguma maneira.

Não é de hoje que as negras e os negros são barrados de festas. Recentemente, algumas pessoas se organizaram para denunciar o racismo praticado na entrada das festas do Villa Mix, a demanda foi investigada pelo Ministério Público. As pessoas asiáticas, por sua vez, nunca ou quase nunca experimentaram ser barradas por seus marcadores étnico-raciais de diferença. Entretanto, a nossa participação nestas festas é, muitas vezes, secundária e violentamente diferenciada.

As festas são uma metáfora perfeita de como operam o sistema de discriminação racial e o mito da minoria modelo. No mundo criado pelos brancos, eles podem se divertir, podem se esquecer de quem são e, verdadeiramente, festejar. As pessoas negras, se não estão do lado de fora, vão ser ininterruptamente relembradas do porquê de não fazerem parte daquele mundo. Às pessoas asiáticas, será relegado um papel acessório, mas elas vão poder fingir esquecer do que representam, tentando se comportar como uma minoria modelo, que pode ser quem ela quiser, desde que se lembre que ela é apenas quase-branca. Esse é o chamado sistema de privilégios do mundo branco, no qual até o direito de festejar livremente é um direito exclusivamente  branco.

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