Texto sobre o 8 de março

Obituário: Registro dos óbitos ou livro em que se lançam os nomes dos mortos, dia da morte e enterro, etc.

Por Munah Malek para o Portal Geledés

Do microfone, palavras de ordem. Do microfone, vozes femininas na luta pela existência e vida de outras vozes femininas. Neli Marcelino de Andrade sabe o que é machismo. Dona Neli sente o peso do machismo a cada garrafada, a cada tapa, a cada noite que é seguidamente estuprada. “Acordei e disse a ele que era dia das mulheres. De presente, me deu um tapa na cara.” Em meio às vozes do microfone, em meio aos corpos femininos, em meio aos peitos desnudos, em meio aos milhares de medos, Dona Neli surge e se junta à multidão. “Ele quer me matar. Disse que hoje me mata!”. O marido grita “Piranha! Sua puta! Eu vou te matar”. E mata. Com as mãos como fosse uma arma, aponta para a mulher e a mata. Ali, ela morre. Um corpo de mulher cai no chão. “Não sei se hoje, amanhã ou daqui a dois dias, mas ele vai me matar”. E o medo é de morrer? “Não, só há uma saída: A morte. Não tenho medo de morrer, tenho medo dele me matar”.

Do microfone seguem ressoando as vozes, as palavras de ordem. “Ô companheira, me ajude que eu não posso andar só. Sem você, ando bem, mas com você, ando melhor!”. O protesto do 8 de março segue pelas ruas. Dona Neli dança, ri, abre os braços, abraça o sol, abraça o tempo, abraça o céu e o que há de eterno naquele instante. Abraça a causa, abraça outros braços. “Tenho 54 anos, três filhas e um filho. Meu filho mora ali onde sobe e desce avião. Eu já fui feliz.” E fala do tempo da felicidade. Do tempo do primeiro marido, do primeiro casamento, da casa, do nascimento dos filhos, da pensão que ficou da morte do homem. “Era feliz, tinha carinho. Hoje sou um lixo. Bebi demais, cai na pedra. Ele me trouxe para rua. Meu atual marido me trouxe para rua. Faz dois anos que estou assim. Dois ou três ou um, não sei. O tempo não sei. O tempo nem me importa”. O choro segue. A história continua. Olha para um lado, olha para o outro. Fala da depressão e da vida na rua. Logo ali ao lado, uma delegacia de proteção à mulher. “Policia não! Polícia não! Chamo policial, digo que ele quer me matar. Digo que não queria sexo e ele me estuprou, falo do meu medo dele me matar. Policial ou ri ou faz nada. Meu filho disse que se ele me mata, mata ele. Quebra as duas pernas. Eu não quero isso. Não quero filho preso. Não quero ele também preso. É preso e depois que sai me mata mais. A polícia sabe que tô ali na praça todo dia, eles sabem o que acontece. Deixa eu morrer. Deixa eu morrer mesmo. Hoje, amanhã, depois não importa. Deixa eu morrer. Ele prometeu me matar hoje, no dia da mulher. Você tem alguma resposta para mim!? Deixa matar!”
Os corpos de peitos nus assustam Dona Neli. “Bota a roupa, menina! Eles vão te estuprar! Se de roupa meu marido já me estupra, imagina assim. Bota a roupa, menina! Olha, ela tá pelada e ele tirando foto! Safado! Para de tirar foto da menina! Safado!”. Pow! Mais um tiro das mãos do marido. Dessa vez o tiro não mata só corpo, mata a alma. Viva morta. “Eu nunca morri, não sei como é, mas tenho medo não. Só tenho medo dele me matar”. Morta viva segue caminhando. Levanta, segue agora viva morta. As mãos fazem o símbolo da paz ou o “v” da vitória. Pow! Nem paz nem vitória para aquele corpo de mulher, preto, feminino. Cai mais uma vez junto às lágrimas. “O sol tá quente”. Dona Neli pensa em voltar para praça. “Tá ficando longe e o sol tá quente, mas o papo tá bom”. “Eu só queria conversar. Só não quero passar meu ódio para você, loirinha”. Segue a marcha.

O microfone parece mudo. Nada faz sentido além das palavras daquela mulher ali no meio, tão real, tão brutal. Eis que do microfone uma chamada. “Dandara!? Presente! Araceli? Presente!”. Todos nomes de mulheres que foram mortas por homens. Dona Neli grita: “Neli Marcelino de Andrade! Presente!”. Um pedido. “ Loirinha, diz para elas que eu também tô aqui! Pelo menos até hoje eu tô aqui. Agora eu tô aqui! Feliz dia da mulher!”. “NELI MARCELINO DE ANDRADE. Presente!”

Ela volta para praça. Um abraço. Dois abraços e um terceiro. Olha. Chora. Agradece. “Se morro hoje, ele não me mata. Hoje fui feliz!” Segue e olha para trás mais uma vez. Chora. Sorri. NELI MARCELINO DE ANDRADE. Presente!

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