Transcidadania: Coletivo prepara travestis e transexuais para o Enem

Sete e meia da noite na Lapa, o bairro boêmio na região central do Rio, não por acaso com maior número de travestis da cidade. Numa rua deserta, conhecida como Beco do Rato, algumas delas caminham silenciosamente há duas semanas por um novo motivo: estudam em um curso preparatório para o Enem, o Prepara Nem, com foco na preparação delas e de homens e mulheres transexuais para as provas. O curso é uma iniciativa do coletivo Tem Local, que milita contra o preconceito e promove ações de cidadania para a população LGBT.

no O Dia

A aula começa e o silêncio é quebrado quando uma das alunas levanta a voz para tirar uma dúvida. Atenta e fascinada com o conteúdo transmitido na aula sobre o período pré-colonial no Brasil, Daniela Faria, 31 anos, não resiste a gritar um “Arrasou” quando conhece os detalhes da viagem de Cabral às novas terras. A mineira, natural de São João Nepomuceno, veio ao Rio de Janeiro para se aventurar na prostituição. Conta que ganhou dinheiro,mas perdeu tudo com o vício em cocaína. Chegou a morar na rua por duas semanas. Hoje, dorme em um abrigo da prefeitura. Depois de sair do pesadelo, ela alimenta o sonho de ser uma profissional respeitada. Talvez assistente social, talvez médica veterinária.

“Quero muito ter a carteira assinada. Estou com o maior entusiasmo de estudar, passar no Enem, fazer uma faculdade e me formar. O curso está sendo um empurrão na minha vida”, diz ela com brilho nos olhos.

As alunas em dia de aula no Prepara Nem. À frente, a professora de Português Gisele Andrade e os coordenadores Juliana Gama e Thiago Bassi. Foto: Alexandre Brum
As alunas em dia de aula no Prepara Nem. À frente, a professora de Português Gisele Andrade e os coordenadores Juliana Gama e Thiago Bassi. Foto: Alexandre Brum

Daniela redescobriu o prazer de estudar depois de mais de dez anos longe da sala de aula, muito, ela lembra, em razão da transfobia que a vitimava no cotidiano escolar. “Eu escutei um professor me dizer que ele não era formado para dar aula a um homossexual. Ele deu zero na minha prova sem eu merecer, só por preconceito. E ainda tinha as piadinhas dos colegas, as gozações, essas coisas acabaram me cansando”, contou.

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Ela sabe que vai encontrar preconceito quando retornar ao convívio de outros estudantes, desta vez na faculdade. Mas garante que que está mais forte para lidar com a intolerância. “As pessoas aqui no curso me dão força. Não tenho mais esse medo. Vai dar tudo certo”.

A transfobia e a falta de dinheiro foram motivos que atrasaram os estudos da mulher transexual Lara Lincoln , 29 anos, Moradora de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ela abandonou a sala de aula quando concluiu o Ensino Médio, há três anos, após idas e vindas. As dificuldades ainda persistem, mas a vontade de chegar ao Ensino Superior e a possibilidade de ascender socialmente a motivam.

“Eu tinha guardado esse sonho numa gaveta, porque a necessidade de trabalhar era e ainda é muito grande. Onde eu moro não tem nem banheiro, é tudo muito improvisado. Mas, de um ano para cá, eu passei a enxergar a faculdade como a possibilidade de ter um futuro melhor e incentivar outras meninas trans a estudar. Muitas que eu conheço não completaram nem a oitava série. Eu estou com muita fé nesse curso”.

As idas e vindas, ela recorda, foram em consequeência do preconceito. O tempo mais longo fora da escola, seis anos, ocorreu quando começou o processo de transição física para o gênero feminino. “A escola fez uma votação que me proibiu de usar o banheiro feminino. Eu ficava de seis às dez da noite me segurando para não ir ao banheiro”, lembra.

Inconformada diante de tanta discriminação, ela resolveu dar um basta.“Eu tive um professor de geografia no Ensino Médio que me expôs ao ridículo no meio de 44 alunos. Eu era a única trans e ele debochou de mim, me tratando pelo nome masculino. Foram várias as vezes até eu tomar coragem de levar o caso à direção. Ele foi demitido. O caso deu até delegacia. Foi apartir daí que eu entendi a importância de lutar contra o preconceito, não abaixar a cabeça para a intolerância.

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Daniela redescobriu o prazer de estudar depois de mais de dez anos longe da sala de aula. Foto: Alexandre Brum

Fortalecida, ela se diz preparada para gritar, se necessário for, contra transfobia qualquer no curso de Direito que pretende cursar. “Eu sei que, em algum momento, vou encarar o preconceito. Mas, desde que eu me tornei uma mulher empoderada, desde que entrei no movimento trans, eu tenho mais energia para encarar o sistema, me sinto com coragem para vencer a discriminação”.

Luta por representatividade

O curso ganhou corpo a partir da inciativa dos amigos Thiago Bassi, um dos fundadores do Tem Local e a ativista Indianara Alves Siqueira, uma das principais representantes do movimento pelos direitos das travestis e transexuais no país. Os professores lecionam voluntariamente e os espaços para as aulas são cedidos por entidades ligadas aos movimentos sociais.

“O Prepara, Nem nasce da necessidade de incluir as pessoas trans nas universidades e tornar comum num ambiente héterossexual e machista, como ainda hoje é o ambiente universitário, a presença delas. Assim, com a convivência, as pessoas vão adquirir uma formação cultural e social melhor, porque vão passar a estar com pessoas que nunca imaginariam sentar ao lado numa sala de aula: as travestis e transexuais”, disse ela.

O coletivo quer oferecer outros cursos com foco neste grupo. Segundo Thiago Bassi, a intenção é oferecer oportunidades para aqueles que tiveram a formação escolar prejudicada. “Como muitas delas deixaram a escola muito cedo, a gente quer oferecer também cursos com noções de outros idiomas e de informática para que elas possam também concorrer a vagas em cursos técnicos”.

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