“A travesti é convidada a sair à cidade apenas como ‘bicho noturno’”

Conversamos e escutamos pessoas trans, travestis, familiares e militantes da causa. Ouvimos suas histórias de infância, de adolescência, de transição, de estudo, de trabalho e de convivência dentro dessa sociedade – e da cidade. Seus relatos estão abaixo, com pequenas alterações em construção de frases e palavras para facilitar a narrativa.

Do Cida de Ludica

Eu sempre me vi fora do padrão, do “normal”. Sempre me senti uma mulher, podia não saber o que era, mas me sentia mulher. Lembro um dia no Ensino Fundamental quando umas amigas foram usar o banheiro feminino e eu naturalmente fui com elas. Aí falaram:

– Não, você não pode, tem que usar outro banheiro!
– Como assim? Eu posso, sou que nem vocês!

Eu me sentia uma aberração. A gente nasce com uma condição e a sociedade diz que é errado e ficamos nos perguntando: por que eu nasci assim? É violento uma pessoa pensar que é uma aberração, que é uma pessoa que deu “errado”.

No momento em que me percebi como transexual foi por volta dos 13 ou 14 anos: na época, houve um crescimento de casos nacionais e internacionais de pessoas se assumindo trans e eu fiquei fascinada com aquilo. Foi aí que entendi que me sentia como mulher e era isso que eu deveria seguir.

A reação dos meus pais quando me assumi mulher trans não foi boa. Minha mãe havia me colocado na psicóloga porque eu estava muito conturbada; e em uma das sessões ela foi chamada para conversar. Minha mãe chorou, negou, ficou agressiva. Como reação, também fui agressiva: mas precisava reconhecer que para eles também era difícil. Meu pai chorou muito.  Apesar das dificuldades, hoje minha mãe vê tanta alegria em mim —  eu realmente tinha que passar por essa crise para melhorar.

Eu sempre tive muita pressão em relação ao momento de fazer a transição. Eu acreditava que antes disso precisava conquistar o meu lugar. Não queria admitir que minha realidade seria a prostituição, que é a realidade de muitas mulheres trans ou travestis. Me dediquei muito aos estudos e fiz dois anos de Química na Universidade Federal de Minas Gerais. Eu queria ser a primeira trans a ter doutorado e só depois passar pela transição. Queria afirmar para a sociedade que posso! É violento o que a sociedade nos impõe e eu fui condescendente com isso. Mas aí me perguntei: quando finalmente vou viver e ser feliz comigo mesma? Mereço respeito e o direito de viver a vida. Não é um título ou doutorado que vão compensar o fato de ser transexual, aliás, não preciso de nada para compensar minha condição.

A partir desse momento minha vida passou por uma reviravolta, mas tive a chance de me preparar para a transição: encontrei uma psicóloga, consegui endócrino… vou completar dois meses de hormonização.

Antes, meu quarto era meu mundo. Eu projetava muito a transição e me escondi no casulo: ficar dentro do quarto e deixar para viver depois. Eu não queria sair para assumir uma imagem que não era minha, uma imagem que ia me fazer mal. Queria dançar da maneira que me sentia confortável, interagir com as pessoas de uma forma que me fazia bem — mas sempre tinha que me conter.

A partir do momento em que decidi “vou pra rua”, vi que os vizinhos começaram a me estranhar. Mas o fato de estar vivendo, de ter largado aquele peso, sofrimento e tudo que estava nas minhas costas, de me expressar da forma que eu quero, me deu coragem de seguir em frente, de colocar um sutiã, de ir para a faculdade e conquistar meu espaço, de mostrar às pessoas que elas não têm o direito de determinar como devo ser tratada – sou eu, a Laura, quem determina isso.

Eu estou vivendo bem, e junto com esse processo de mudança, passei para Engenharia Ambiental. É uma coisa engraçada… eu gostava de Química, mas lá eu estava passando uma imagem que não era a minha: a de um homem fazendo Química. Poucas pessoas sabiam que eu era uma mulher e eu não queria falar isso antes de passar pela transição. Hoje vejo que não é uma hormonização ou cirurgia que vão me fazer virar mulher, porque me sinto mulher e sou mulher desde sempre.

BABI MACEDO
Desde a infância eu já sabia que eu não era o que diziam ou esperavam que eu fosse. Mas sempre digo que tive uma infância normal. Eu não tinha binarismo de cor ou de brinquedo: se eu queria um carrinho, minha mãe me dava; se eu queria uma boneca, também.

Na adolescência imaginava que a possibilidade era apenas uma: ser um homem gay. Eu sabia que não era um homem gay, mas não sabia exatamente o que eu era. Quando eu conversei com minha mãe, ela pediu que eu procurasse um psicólogo especializado na causa LGBT, para dar uma melhor orientação.

Meu pai teve um pouco de receio no começo, mas ele sentia mais medo do que eu poderia enfrentar quando assumi minha identidade, do que de fato o que eu estava disposta a ser. Quando a gente pensa em travesti ou mulher trans, a gente sempre vai pensar na prostituição e nas drogas, porque é para onde a sociedade nos empurra. Mas ele ficou mais tranquilo quando viu que consegui concluir meus estudos e que passei na faculdade.

Travesti é uma identidade muito ampla: talvez a mais ampla que tem. Porque você vai ver travestis que se dizem mulheres; bem como travestis que se dizem homens gays; bem como travestis que não se dizem nem homem, nem mulher, mas que são travestis – esse último é o meu caso. Eu não me identifico nem quanto homem, nem quanto mulher, mas como uma travesti que apesar de ter essa identidade ampla é uma identidade feminina. As pessoas fazem uma “higienização” da mulher trans. Já a travesti traz o estigma da prostituição, da miséria, da margem.  Como diz a Sofia (Sofia Fávero,  estudante de Psicologia e travesti, seu relato está ao final desta reportagem), estou querendo domar a palavra “travesti” pelo chifre!

Um dia eu e meus amigos estávamos na praça perto de casa fazendo uma coreografia da Beyoncé juntos. Foi quando um menino — com quem cresci — me atirou uma pedra e graças à coreografia eu estava abaixada naquela hora, senão acertaria em cheio a minha cabeça. Eu peguei a pedra, embrulhei, guardei e quando cheguei em casa eu a pintei com a imagem da Frida, a imagem da luta e da libertação. Hoje ela fica no meu altar. Foi quando consegui reverter a situação de violência em arte.

A arte é marginal: é esse lugar que a sociedade me colocou também, como marginal. Por que não falaria disso na minha arte?

DALCIRA FERRÃO
Comecei a atender a Babi quando ela tinha 16 anos e estamos juntas até hoje em acompanhamento. Eu vejo essa menina se transformando em mulher e fico super orgulhosa. Eu era uma pessoa oposta a que sou hoje, mas a faculdade de Psicologia me libertou. Durante o curso eu comecei a ter contato com o movimento LGBT e Direitos Humanos.

Na época eu ainda me identificava como um mulher heterossexual, passava por esse questionamento dentro do movimento LGBT. Meu trabalho de conclusão de curso foi sobre a causa LGBT, questionando se o movimento promovia realmente a mudança social. Até hoje me pergunto isso: qual nosso papel e até onde podemos implementar essas mudanças?

Comecei a trabalhar no Centro de Referência LGBT da Prefeitura Municipal (de Belo Horizonte) em 2009. Foi quando comecei a ganhar mais legitimidade e a ter contato com a população — principalmente travestis em situação de rua.

É muito frequente o isolamento social para pessoas trans: medo de conviver nesse mundo, medo de se relacionar. A transfobia faz com que as pessoas acabem se enclausurando dentro do seu mundo, dentro de sua casa.

Falta acesso a serviços no SUS especializados para pessoas travestis e trans: em alguns poucos estados há a cirurgia, mas com uma fila de mais de 20 anos que na prática não funciona. Quem paga acompanhamento orientado é quem consegue pagar plano de saúde, mas quem não tem acaba se submetendo a fazer suas mudanças de outra forma.

A escola ainda não é um lugar de respeito às identidades trans: não é democrática e sem violência. Consequentemente as pessoas, não concluindo a escola, estão fora do mercado de trabalho. O que sobra é a prostituição como única opção de sobrevivência: tudo bem se você está lá por uma questão de escolha, mas como única opção é inadmissível.

TATIANA NOYA
Para mim foi difícil ouvir que meu filho não sabia “o que era”, que não se identificava com gênero algum. Eu sempre fico com medo quando o vejo saindo de saia: esse mundo não aceita uma pessoa como ele. Como uma pessoa de mais de 1.90m, cabelos coloridos, vestido com saia, não irá chamar a atenção?  Fico furiosa quando o olham de maneira diferente.

A questão do gênero sempre me pegou porque eu nunca fui feminina: fui a primeira da rua a fazer tatuagem, a primeira da rua a raspar a cabeça, trabalho em um banco com cabeça raspada e às vezes e as pessoas me olham torto. Eu demorei pra assumir isso e tentei me enquadrar na sociedade para ser mais “mocinha”.

Mas ainda assim quando ele se assumiu agênero foi um choque. Todo dia é medo, não tem jeito, é medo. Eu juro que entendo como as pessoas trans se sentem, porque é medo o que sinto: toda vez que ele passa batom pra sair, pega minha bolsa pra sair, usa as minhas roupas, eu fico com muito medo. Eu aceito. Mas tem gente que não aceita e moramos em São Paulo, que é um lugar violento.

Se eu já chamo atenção sendo mulher com cabeça raspada e tatuada, ele chama três vezes mais. Enquanto está no olhar, tudo bem! Mas tem hora que sei que vai virar outra coisa. Houve um recolhimento desse sintoma de ódio, mas hoje [referindo-se ao cenário político-social no Brasil e no mundo] voltou a ser permissiva a carta branca para odiar. Faz quase um ano que não vou para a casa dos meus pais porque nem eles nem meus irmãos o aceitam. Não quero ter de enfrentar uma agressividade contra meu filho agora.

Eu estou arranjando muita briga dentro do movimento feminista em relação a travestis e a pessoas trans. As mais radicais não aceitam e dizem que quem nasceu homem vai morrer homem. A gente está dividindo tudo! Chega, pelo amor de deus! Se você se reconhece como mulher, você é mulher. A gente tem que parar de dividir e começar a unir, o negócio está ruim para todos! Vamos aceitar, vamos somar!

PAULO  BEVILACQUA
Eu sempre soube que era diferente. Na infância eu não tinha muita noção do que é ser homem ou ser mulher – tinha noção que os genitais eram diferentes, e aquilo já me incomodava muito. Brincava bastante com coisas de “meninos”. Mas eu nunca me identifiquei como lésbica, sabia que não era uma questão de afeto ou atração sexual.

Quando na infância eu conheci a Roberta Close fiquei maravilhado. “Meu deus, como aconteceu isso? Tem que rolar o contrário!”. Meu pais me falavam que isso não existia. Para pessoas trans o preconceito é muito grande. Quando você é negro e sofre preconceito na rua ou na escola, você volta para casa e a família te acolhe. Masquando você é trans e sofre preconceito na cidade, ao voltar para casa em muitos momentos você não é acolhido: você é trans, seus pais são cisgêneros [quando se identificam com o  gênero que foi atribuído ao nascer, ao contrário de pessoas trans]  é mais difícil!

Minha adolescência foi complicada porque comecei a desenvolver caracteres lidos como femininos, a ter peitos… aí descobri que existia a mastectomia quando soube do caso de uma mulher que sofreu câncer. Eu fiquei maluco com aquilo: precisava descobrir como ter câncer! Olha que doido! Aí soube que havia mulheres que faziam a mastectomia para prevenir a doença. “Ué, então eu posso fazer isso!”. Essa foi a primeira modificação corporal que eu soube que poderia ter acesso.  Até então acreditava que não tinha como ter um físico  “masculino. Eu achava que aquilo era uma doença mental, achava que ninguém passava por coisa assim e guardava como um segredo.

Eu comecei a tomar hormônio e fazer minha transição sem falar para minha família, e não exigi deles que me chamassem de Paulo. Eu me afastei de todos os amigos, praticamente. Quando você começa a modificar seu corpo, você começa a ser lido diferente e a lidar de outra forma com as coisas ao redor. Para os pais, principalmente, parece que morreu uma filha pra nascer um filho; parece que é outra pessoa que está ali, quando definitivamente não é! Como se mudar seu físico modifica seu caráter e personalidade.

Hoje eu passo despercebido: para mim é bom e me sinto seguro, porque é mais difícil passar por alguma violência. Para mulheres trans é complicado: se são muito altas ou mais musculosas elas sofrem bastante nas ruas. Um homem baixinho e mais esguio passa despercebido.

Há muitas pessoas cis, principalmente  mulheres, que se aproximam de homens trans por terem aquela ideia de que homem trans tem um “lado feminino” — como se existisse lado feminino ou masculino, ainda mais atrelados à uma ideia biológica, e como se isso o isentasse de ser machista. Não necessariamente. Tem também muitos homens cis que vêm atrás de homens trans por fetiche.

SOFIA FÁVERO
A questão da “passabilidade” — quando as pessoas não percebem que você é trans ou travesti — não deveria ser visto como algo ruim, como submissão ao sistema. Uma coisa é você compreender como o sistema funciona: usá-lo a seu favor também é resistência, é um ato político. Eu tive que anexar vários laudos para comprovar que sou trans, porque a transexualidade é considerada uma patologia. Se eu não tivesse me submetido à instituição do Direito eu não teria hoje uma série de possibilidades que respeitam a minha liberdade: que é meu nome, meu sexo, o respeito social. Isso é uma estratégia contra o sistema. Que bom que as pessoas que passam “batido” não são expostas a esse tipo de violência. Muitas pessoas trans querem passar batido mas não conseguem.

O que seria um sistema de auto-aceitação para a gente? Me compreender como travesti? Pode ser que sim, pode ser que não amanhã. Porque o mundo está em constante transformação, e eu também estou. Eu acho legal relativizar a questão da transvestilidade. Porque parece que é uma essência estática. A minha aceitação se passa mais por um conceito político, como eu me identifico como travesti em determinadas instâncias. Eu não chego numa padaria e falo: “oi, me dá um quilo de pão porque sou travesti”. Em casa, sou a Sofia, tenho uma vida normal. Mas na rua, em determinados espaços de disputa, de poder, nas escolas, na faculdade, eu vou me posicionar. Eu estou aqui, ocupando esse espaço.

Quando entrei para a faculdade de Psicologia, achei quer era a única e primeiríssima trans. Que nada, há várias! Existe uma invisibilidade muito grande e por isso criamos essa história de pioneirismo. Na universidade, a gente como travesti ou transexual, é sempre empurrada para o tema: me senti muito refém do gênero e da transexualidade. Eu adoro estudar distúrbio alimentar, por exemplo. Mas todo mundo acha que se você é travesti você precisa estudar gênero.

A forma que a travesti é convidada a sair à cidade é a de “bicho noturno”, como se travesti surgisse do chão às cinco horas da tarde e voltasse ao chão às cinco horas da manhã! Como se o dia não pertencesse às travestis. Nós temos um olhar diferenciado sobre o deslocamento urbano, porque é um momento de pesar. Pegar transporte público pra mim é muito louco: porque mesmo coberta dos pés à cabeça, há uma imagem  hipersexualizada da travesti. Pedir informação e as pessoas não responderem, perguntar “que horas são?” e as pessoas virarem a cara. É uma negação de acesso que não é só de espaço ou de comunicação social.

Existe um acesso diferenciado das travestis à cidade, porque o que é ofertado a nós é a rua. A “rua”, entre aspas, são os campos de prostituição: porque causa estranhamento quando acessamos um espaço escolar, um espaço estudantil, um espaço de saúde.

Um homem trans, por exemplo, que precisa ir ao ginecologista, tem dificuldade de acessar planos de saúde. A sociedade fica chocada: o que um homem está fazendo aqui nesse médico?

Eu não sou vítima, sabe? Minha irmã e minha mãe fizeram uma vaquinha e pagaram minha mamoplastia; já meu pai não fala comigo até hoje. Mas você perde pessoas e na realidade cria um filtro: se você encarar de outra forma é um crescimento pessoal muito grande.

As entrevistas foram concedidas durante o evento TRANS.FORMA.AÇÃO, produzido pelo Cidade Lúdica em parceria com SESC Palladium, em novembro de 2016, em Belo Horizonte/MG. Saiba mais sobre o evento clicando aqui

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