Um Fernando Pessoa mais sombrio, por Silio Boccanera

A obra de arte transcende o autor, claro, e o apoio de Jorge Luiz Borges à ditadura militar argentina, por exemplo, não diminui a qualidade de sua literatura. Nem a obra de Ezra Pound é menor por causa de suas simpatias políticas pelo nazismo. Tampouco a arquitetura de Oscar Niemeyer merece crítica só porque ele defende o stalinismo. Não dá, entretanto, para esconder uma certa decepção quando se descobre que o ídolo tem pés de barro. Nunca é agradável descobrir um aspecto sombrio sobre alguém que admiramos, mesmo que só no plano intelectual.

por Silio Boccanera

Daí meu susto agora diante do poeta português Fernando Pessoa, que aparece em todos os seus tons, alguns bem cinzas, na longa e bem pesquisada biografia recém-lançada no Brasil pela Editora Record, com o título do personagem e subtítulo “uma quase autobiografia”. O livro é do advogado e intelectual pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, que dedicou muitos anos a desvendar vida e obra daquele que muitos (inclusive o biógrafo) consideram um dos maiores – senão o maior – poeta da língua.

Talvez por ignorância – hipótese mais provável, no meu caso – eu nunca tivesse esbarrado em informações suficientes sobre a vida extra-literária de Pessoa, a ponto de já saber de seu lado preconceituoso no que se refere a classe, raça e gênero. Daí o choque da novidade ao descobri-lo neste baixo nível no livro de Cavalcanti. Pode-se atribuir talvez a um “reflexo do período” o que Pessoa escreveu, por exemplo, sobre a mulher: “na nossa época, (ela) supõe-se com direito a ter uma personalidade; o que pode parecer justo e lógico, e outras coisas parecidas; mas que infelizmente foi de outro modo disposto pela natureza”. Diz ainda que “em relação ao homem, o espírito feminino é mutilado e inferior”. E que “o verdadeiro pecado original, ingênito nos homens, é nascer de mulher”.

Menos justificável como subproduto da época (início do século XX) é sua opinião sobre os trabalhadores, quando diz que a sociedade deve ser dominada por uma elite de “super-homens”, enquanto operários devem ser “reduzidos a uma condição de escravatura ainda mais intensa e rígida do que aquilo a que chamamos a escravatura capitalista”.

Pior – e mais decepcionante – é ler o que Pessoa escreveu sobre raça. Já tinha 28 anos, não era um adolescente imaturo, conforme relato no livro de Cavalcanti: “A escravatura é lógica e legítima; um zulu (negro da África do Sul, que falava a língua banto) ou um landim (indígena de Moçambique, que falava português) não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir aos fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico. O degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude”.

Pessoa continua, em texto de 1917: “A escravidão é lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor covarde que todos temos à liberdade é o verdadeiro sinal do peso de nossa escravidão”.

Quase dez anos depois, ele se mantinha firme nessas convicções racistas: “Ninguém ainda provou que a abolição da escravatura fosse um bem social”. E ainda: “Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs”?

BASE HISTÓRICA

Pessoa escrevia essas barbaridades menos de trinta anos após a abolição da escravatura no Brasil e mostra-se um sucessor legítimo de longa tradição portuguesa no apoio à servitude de povos que a elite lusitana considerava inferiores, dos negros africanos aos índios brasileiros. Como escreveu o historiador brasileiro Jorge Caldeira: “Desde a chegada dos primeiros colonos (portugueses), o Brasil foi uma sociedade escravista. Só havia uma maneira de os europeus sobreviverem nas novas terras: possuir um escravo que, caçando e pescando, lhes garantisse o sustento. Quando o foco da atividade econômica passou da extração para o cultivo, ampliou-se ainda mais a necessidade de escravos”.

As primeiras vítimas foram os índios, então chamados de “negros da terra”. Mem de Sá, terceiro govenador-geral do Brasil, determinou em 1562, “que fossem escravizados todos, sem exceção”. E assim se fez com 75 mil caetés e, depois, os tupiniquins. Quando o número de indígenas se mostrou insuficiente, os portugueses começaram a importar escravos da África.

Outro historiador brasileiro, Eduardo Bueno, conta que os padres jesuítas se opunham à escravidão dos índios – sobretudo os já cristianizados – mas aceitavam a dos africanos. E os próprios padres tinham escravos negros. “Os jesuítas se empenharam em submeter os indígenas aos rigores do trabalho metódico, aos horários rígidos e à monogamia. Combateram a antropofagia, a poligamia e o nomadismo – e assim acabaram sendo responsáveis pela desestruturação cultural que empurrou para a extinção inúmeras tribos” – escreve Bueno.

O abolicionista Joaquim Nabuco se indignou que grande número de padres tivesse escravos no Brasil. “Nenhum padre nunca tentou impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas”. Ninguém menos do que o reverenciado padre José de Anchieta observou: “Para esse gênero de gente (os índios), não há melhor pregação do que espada e vara de ferro”.

Bueno relata que “houve casos de escravos lançados vivos nas caldeiras ou passados nas moendas, além daqueles que, besuntados de mel, foram atirados em grandes formigueiros”. Dos castigos, segundo o historiador, “conhecemos a palmatória, as chicotadas no pelourinho (às vezes, até matar), tronco (prende os pés), colar de ferro. Mas podiam ser punidos com a castração, a quebra dos dentes a martelo, a amputação dos seios, o vazamento dos olhos, a queimadura com lacre ardente”.

Da África vieram mais de três milhões de escravos para o Brasil, e a resistência a acabar com a escravatura fez com que ela durasse oficialmente até 1888. Continuou a existir, porém, no plano informal, pois como explica Bueno: “Os libertos foram jogados na miséria, sem terras para cultivar, escolas, hospitais. Alguns ficaram nas fazendas, com salários baixíssimos. Milhares foram para as grandes cidades, em busca de algo melhor; daí a origem das favelas”.

A lei proibiu a escravidão ao final do século XIX, mas não conseguiu (nem pretendia) suprimir o preconceito, que existe até hoje na sociedade brasileira. Menos em relação aos índios, porque estão longe da vista, não interferem no dia a dia e não ameaçam o conforto das elites, a não ser quando exigem direitos sobre suas terras.

Já os negros, de presença ostensiva nas cidades, mesmo que confinados a favelas, geram um racismo que não se expressa mais com a clareza abominável de Fernando Pessoa, no texto citado acima. São tratados como cidadãos inferiores, sob justificativas nunca explicitadas como preconceito racial – o que de fato é – e sim como suposto resultado de pobreza e baixo nível educacional dos negros, mulatos, pardos ou seja lá qual eufemismo escolhido para definir não-brancos.

Pelo menos Fernando Pessoa evitou essa máscara de hipocrisia.

Fonte: Gazeta Digital

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