Um negro em eterno exílio

A longa travessia de Carlos Moore, o ativista e intelectual que denunciou o racismo em Cuba e passou a vida perseguido pelos dois lados da Guerra Fria, até chegar ao Brasil e encontrar um país mergulhado numa crescente tensão racial

Por , do El Pais 

Aos 22 anos, Carlos Moore já tinha vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já tinha conhecido a fome e a violência na pequena cidade cubana onde nasceu, já tinha desejado não ser preto e se esforçado por alisar o cabelo, clarear a pele com produtos arriscados e desachatar o nariz com prendedores, já tinha emigrado para os Estados Unidos e descoberto a luta pelos direitos civis, já tinha se apaixonado por Patrice Lumumba, o célebre líder congolês, e planejado um atentado ao consulado belga em Nova York para vingar-se de seu assassinato, já tinha se encantado com a revolução depois de um encontro com Fidel Castro, já tinha se tornado comunista e voltado a Cuba para colaborar com o processo revolucionário, já tinha descoberto que o regime cubano era tão racista quanto aquele que tinha derrubado, já tinha sido encarcerado uma vez por denunciar que o racismo persistia na revolução, já tinha sido condenado a quatro meses num campo de trabalhos forçados uma segunda vez pelo mesmo motivo, depois de abordar o próprio Fidel Castro em público, já tinha feito uma confissão, para não ser morto, de que havia se equivocado e de que não havia racismo em Cuba, já tinha se refugiado na embaixada da Guiné quando percebeu que seria executado de qualquer modo, já tinha fugido para o Egito e depois para a França, sem nenhum documento, já tinha sido rejeitado por um Jean-Paul Sartre convencido de que ele era “agente do imperialismo”, já tinha sido acolhido por um dos ideólogos da negritude, o grande poeta surrealista martinicano Aimé Césaire, já tinha virado segurança do ativista negro Malcolm X, quando este esteve em Paris, e já tinha sofrido de todas as formas pelo seu assassinato. Isso tudo aconteceu até os seus 22 anos. Depois, aconteceu muito mais.

Carlos Moore tem hoje 72 anos. E lança no Brasil a sua autobiografia:Pichón – minha vida e a revolução cubana (Nandyala), publicada aqui graças a um financiamento do público, via crowdfunding, e nos Estados Unidos em 2008, mesmo ano em que Barack Obama tornava-se o primeiro negro eleito presidente da maior potência global. O prefácio é de Maya Angelou (1928-2014), artista e ativista, ela mesma uma lenda, que desempenhou um papel crucial para que o então jovem Moore descobrisse sua identidade e a realidade brutal das mulheres negras.

Para alcançar a trajetória de Carlos Moore, é preciso compreender que, como filho de imigrantes jamaicanos, ele ocupava o degrau mais baixo da escala racial da sociedade cubana. Pior do que um negro cubano, era um negro imigrante das demais ilhas do Caribe. Em seu livro aparecem genocídios de imigrantes negros em Cuba dos quais a maioria jamais ouviu falar. Aos 13 anos, sua mãe já tinha sido estuprada e engravidada pelo padrasto. Com um filho do incesto, ela casou-se com outro imigrante jamaicano. Moore nasceria anos depois, entre vários irmãos. E jamais entendeu por que era rejeitado pela mãe, que o espancava a ponto de deixá-lo de cama por dias, coberto de talhos e hematomas, tendo chegado a desenvolver uma espécie de reação convulsiva. O pequeno Moore fazia buracos no quintal, para tentar escapar dessa mãe. Sua fotografia era a única que não estava pendurada na casa da família.

Um dia a mãe partiu, abandonando a todos. E só muito mais tarde, já adulto, ele descobriria a raiz da violência materna inscrita em surras cotidianas no corpo do filho. A vida de Carlos Moore pode também ser contada por uma longa travessia em busca de uma mãe e de uma identidade.

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