Um regresso ao passado em Gorée. Não em nosso nome

No decorrer da sua visita de Estado ao Senegal ocorrida na passada semana, achou por bem o Sr. Presidente da República visitar a ilha de Gorée, um antigo entreposto nas rotas atlânticas do tráfico de escravos. A carga simbólica do lugar tem aumentado nos últimos anos, devido às visitas de proeminentes figuras de Estado e do meio eclesiástico que aí escolheram pedir perdão pelo envolvimento histórico das comunidades que representam no tráfico e/ou escravização de seres humanos. E é sobejamente conhecida a complexidade política, ética e performativa de que se revestem atos públicos desta natureza. Mas, ao contrário destas figuras, e apesar das expectativas que o anúncio da sua visita criou, o Presidente escolheu não reconhecer em Gorée a longa e sinuosa história da responsabilidade portuguesa no comércio e escravização de africanos, nem as outras formas de opressão que em nome do país foram praticadas e legalmente sustentadas nas colónias africanas até à extinção do regime colonial português em 1974-75. Porque este não-reconhecimento tem constituído a pedra angular da política da memória preconizada pelo poder político em Portugal desde essas datas, a omissão presidencial nada trouxe de novo. No entanto, ela foi acompanhada de declarações que, marcadas por uma inquietante imprecisão histórica, fizeram ecoar uma narrativa de pioneirismo humanista português cujo paternalismo implícito foi liminarmente rejeitado por portugueses e africanos quando, em 1974-75, optaram por solidarizar-se na defesa do princípio da autodeterminação dos povos e no repúdio do colonialismo.

Do DN

Declarou Marcelo Rebelo de Sousa que Portugal aboliu a escravatura “pela mão do marquês de Pombal, em 1761,” e que “essa decisão do poder político português foi um reconhecimento da dignidade do homem, do respeito por um estatuto correspondente a essa dignidade”. Esta visão idealista e excecionalista do legado colonial da história portuguesa, assente num alegado pioneirismo humanista, foi sendo construída ao longo do século XIX e popularizada durante o Estado Novo. Serviu como ferramenta retórica que permitiu mobilizar a opinião pública nacional a favor do projeto imperial que começou a desenhar-se em fins do século XIX e, por outro lado, responder aos ataques de potências rivais ou de instituições internacionais como a ONU, quando, a partir dos anos 50, o colonialismo passou a ser rejeitado como modelo de desenvolvimento económico, social e cultural. Além de não refletirem os consensos científicos vigentes sobre a história colonial portuguesa nem o estado da arte no conhecimento dos arquivos coloniais, as declarações do Presidente reavivaram o branqueamento da opressão colonial implícito na visão do projeto colonial português como “missão civilizadora”, uma visão que é ainda muito popular nos setores mais retrógrados da sociedade portuguesa, mas que é inerentemente paternalista e particularmente atentatória da dignidade e da pujança cultural dos povos colonizados.

Disse ainda o Presidente: “Nessa medida, nós reconhecemos também o que havia de injusto e de sacrifício nos direitos humanos, como diríamos hoje em dia, numa situação que foi abolida.” Para além da chocante benevolência das escolhas terminológicas, que reduzem à injustiça e ao sacrifício aquilo que constituiu uma prática desumana e criminosa, estas declarações passam em branco a complexidade do processo abolicionista em Portugal e em todas as sociedades escravocratas, que promoveu tantas vezes a contradição viva na pessoa de líderes abolicionistas que mantinham largos contingentes de escravos nas suas propriedades. Como o mesmo marquês de Pombal, que, se é verdade que iniciou o longo processo abolicionista português, também criou, em 1755, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que promoveu a introdução de escravos de Bissau e Cacheu na Amazónia e, em 1756, a Companhia de Pernambuco e da Paraíba para controlar o tráfico negreiro, sobretudo de Angola, para o Nordeste brasileiro.

O ato de reavivar narrativas de má memória perversamente restaura a má consciência que os portugueses há muito rejeitaram na relação com a sua história. E coloca obstáculos sérios à já hercúlea tarefa que todos os estudiosos da história, literatura e cultura portuguesa nas suas múltiplas dimensões, portugueses e estrangeiros, em instituições de investigação e ensino portuguesas e estrangeiras, desempenham quotidianamente no sentido de assegurarem condições de visibilidade e de debate em pé de igualdade com as culturas com que Portugal partilha responsabilidades históricas num trágico capítulo da história da humanidade que, sim, é possível e urgente ultrapassarmos.

Pedro Schacht Pereira, professor universitário, EUA
Anna M. Klobucka, professora universitária, EUA
Isabel Ferreira Gould, investigadora, EUA
Lisa Voigt, professora universitária, EUA
Pedro Serra, professor universitário, Espanha
Miguel Vale de Almeida, antropólogo, Portugal
Ana Maria Martinho, professora universitária, Portugal
Carlos Mendes de Sousa, professor universitário, Portugal
Everton V. Machado, investigador e docente universitário, Portugal
Christopher Larkosh, professor universitário de estudos luso-afro-brasileiros, EUA
Victor K. Mendes, professor universitário, EUA
Margarida Rendeiro, docente universitária, Portugal
Rui Bebiano, docente universitário, Coimbra, Portugal
Luiz Felipe de Alencastro, historiador e cientista político, Brasil e França
Cristiana Bastos, antropóloga, Portugal
Ana Lucia Araujo, Professora universitária, EUA
Isabela Figueiredo, escritora, Portugal
Alexandra Lucas Coelho, escritora e jornalista. Lisboa, Portugal
Joana Gorjao Henriques, jornalista, Portugal
Célia Carmen Cordeiro, Instrutora de Língua e Cultura Portuguesa, EUA
Pedro Sousa Silva, músico, Portugal
Dulce Fernandes, realizadora, EUA
Raquel Ribeiro, escritora, professora universitária, Reino Unido
Mojana Vargas, professora, UFPB, Brasil.
Patrícia Ferreira, estudante de doutoramento, EUA
Alfredo Cesar Melo, professor, Unicamp, Brasil
Gabriela Silva, investigadora de pós-doutoramento, Capes, Brasil
Mamadou Ba, Militante Anti-racista, Portugal
Margarida Paredes, Antropóloga, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Sadiq S. Habib, Antropólogo, Reino Unido
João Mário Grilo, realizador e professor universitário, Portugal
Inês Beleza Barreiros, Investigadora, Portugal-EUA
Fernando Matos Oliveira, docente universitário, Coimbra, Portugal
Elísio Macamo, Professor universitário, Basel, Suíça
Vanessa Rato, jornalista e investigadora, Portugal
Dulce Maria Cardoso, escritora, Portugal
Vasco Araújo, artista plástico, Portugal
Irene Flunser Pimentel, historiadora, Portugal
André Barata, filósofo, UBI, Portugal
Luís Aguiar-Conraria, professor universitário, Portugal
Teresa Pizarro beleza, professora universitária, Portugal
Paulo Jorge de Sousa Pinto, historiador, Portugal
Pedro Cardim, professor universitário, Portugal
Elsa Peralta, antropóloga, Portugal
Inocência Mata, professora, Universidade de Lisboa, Portugal
Fernando Rosas, historiador, professor universitário, Portugal
Frederico Lourenço, escritor, Portugal
João Constâncio, professor universitário, Portugal
André E. Teodósio, encenador e escritor, Portugal
Paulo Jorge Fernandes, professor universitário, Portugal
Manuel Loff, historiador e professor universitário, Portugal
Miguel Bandeira Jerónimo, Historiador, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
Filipa Lowndes Vicente, historiadora, ics-u lisboa, Portugal
José Pedro Monteiro, investigador, Portugal
Miguel de Barros, sociólogo, investigador, ativista, Guiné-Bissau

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