Vigiar e punir a quem?

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou hoje (com uma assustadora margem positiva) a PEC que intenciona reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. Para os rincões conservadores desse país, essa é uma pauta histórica que encontraria sua necessidade justificada pelo excesso de leniência com os menores que cometem crimes.

por Alexandre Branco Pereira via Guest Post para o Portal Geledés

É bem simples, entretanto, desmontar o mito. Em primeiro lugar, há a discussão conceitual sobre o tipo de justiça que queremos construir dentro das instituições estatais. Uma justiça que encerra, pune, amontoa e esquece dos seres humanos, a maior parte das vezes negrxs e jovens (a maioria entre as vítimas e a maioria entre os algozes), ou a justiça que reintegra e ressocializa, tornando possível que essas pessoas, muitas vezes em situações de vulnerabilidade social desde o princípio de suas vidas, reconstruam as estruturas sociais que a permitem existir exteriormente à prisão. Essa é uma discussão que encontra vozes congruentes em vários setores da sociedade, inclusive dentro do aparato estatal responsável pela construção das políticas públicas (Ministério da Justiça e suas ramificações, como o DEPEN), e curiosamente permanece na esfera teórica.

Em segundo lugar, é preciso situar a informação que estamos abordando. A necessidade legal da redução da maioridade penal apontada por seus defensores é resguardada pelo argumento de que esses menores criminosos são uma grande fonte de origem de crimes violentos, e que passam impune por esses crimes sob a guarida de sua baixa idade. Todavia, nos deparamos com outro mito de fácil desconstrução. Segundo a Senasp, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, a estimativa é a de que os jovens entre 16 e 18 anos são responsáveis por ínfimos 0,9% do total de crimes praticados no país no ano de 2011. Destes absurdos 0,9%, praticamente metade (43,7%) são crimes contra o patrimônio (!), enquanto 10,3% desse número corresponde a crimes cujo desfecho é a morte da vítima.

Outro estudo que achei por bem ressaltar é o que mostra o quão letal são nossas forças de segurança. Entre 2000 e 2010, a proporção é de 15 civis mortos intencionalmente pela PM-SP para cada policial morto em ação. Segundo a antropóloga Tereza Caldeira, “as mortes de civis em confronto dificilmente podem ser consideradas acidentais ou como um resultado do uso da violência pelos criminosos. Se fosse o caso, o número de policiais mortos também deveria aumentar, o que não é o caso”.  Isso significa que não há uma guerra, há um massacre, pois é essa a denominação de uma intervenção letal de uma força armada organizada contra uma população civil e desarmada. Para nos atermos num dado mais atual, em 2013 22% das mortes na capital paulista foi cometida por um policial militar em serviço. Ou então outra série histórica, dizendo que entre 2005 e 2009, mais de uma pessoa foi morta por dia por um policial militar paulista, o que fez com que a PM-SP matasse mais pessoas que todas as forças policiais estadunidenses combinadas no período (os dados são só paulistas, pois há claramente uma subnotificação em outros estados, além de o Brasil ainda não possui um banco de dados integrado sobre segurança pública que seja operacional).

A pacificação da polícia pacificadora.
A pacificação da polícia pacificadora.

Um último dado importante para a reflexão que pretendo fazer é sobre o genocídio da juventude negra. O Mapa da Violência de 2013 apontou que entre 2002 e 2010, dos 467,7 mil homicídios contabilizados, 65,8% foram de pessoas negras. Enquanto o índice de brancos assassinados diminuiu 26,4%, o de negros aumentou 30,6%.  Entre a população carcerária, do total de 514.582 pessoas presas, quase 60% são negrxs.

Enquanto a reaçada do Congresso clama pelo recrudescimento de nossas leis, punindo crianças sob o pretexto de apresentar a solução para a segurança pública desse país, há claramente no país uma vítima preferencial, o jovem negro e marginalizado, e um algoz preferencial, que não é incomodado em nenhum desses debates. Muitas vezes, ao contrário, ele é alçado à condição de propositor das políticas públicas de segurança. O alvo da proposta de emenda constitucional que pretende encerrar em jaulas meninxs de 16 anos (como se nas instituições correcionais já não fosse assim) são as exatas vítimas preferenciais do braço armado do Estado, não o aprimoramento do quadro da segurança pública no país. Enquanto isso, um problema real de segurança pública, que é a existência de polícias militarizadas, racistas, machistas, homofóbicas e higienistas sociais (não porque ela própria o é por natureza, mas sim porque sua origem é o Estado, e a índole do Estado é a índole da elite branca) passa impune e empoderada.

Tempos difíceis.

P.S.: É bom que se diga que a luta não acabou. Ainda há instâncias a serem percorridas antes que essa aberração se torne uma realidade legal.

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