18 anos de cotas na UNEB: Travessias para educação antirracista na Bahia

FONTEPor Iris Verena Oliveira, enviado para o Portal Geledés
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“Vou aprender a ler pra ensinar os meus camaradas”, na letra da canção Yáyá Massemba, composta por Roberto Mendes e Capinam, o plano construído por gerações de negros no Brasil ficou registrado. A canção inicia com o lamento sobre a noite “no porão do navio negreiro”. De lá, do “fundo do cativeiro”, a estratégia de planejar o futuro dos seus foi amplamente utilizada por homens e mulheres em momentos difíceis, e lhes permitiram a construção de redes de apoio e solidariedade em irmandades, associações, terreiros e cantos de trabalho, que foram fundamentais para o acúmulo do pecúlio, com o qual compraram a alforria. Não foi incomum, durante o período escravocrata, que as mulheres negras investissem na compra da liberdade de seus filhos, antes das suas. A tática projetava um futuro diferente para os filhos e previa que as próximas gerações ocupariam outros lugares na sociedade racialmente hierarquizada do Brasil.

A abolição formal do sistema escravista não veio acompanhada de medidas que possibilitassem o acesso à educação e terras, como defendia o abolicionista negro André Rebouças. Sendo assim, o século XX foi marcado por inúmeras frentes de luta dos movimentos negros pela escolarização. Em diversas áreas do conhecimento é possível identificar exceções à regra, intelectuais negros/as que conseguiam superar os obstáculos de permanência na escola e universidade. Tais trajetórias são marcadas pela solidão de ser o único negro no seu meio e/ou por iniciativas de aquilombamento nos movimentos sociais, voltadas para elaboração de estratégias visando o ingresso de maiores percentuais de crianças, jovens e adultos na escolarização formal.

Considerando esse histórico, a aprovação do Sistema de Cotas para negros/as na Universidade do Estado da Bahia é um marco que precisa ser comemorado! O pioneirismo da UNEB é decorrente da articulação que garantiu aprovação desse Sistema no Conselho Universitário, em 18 de julho de 2002, com destaque para atuação de intelectuais negros/as como Valdélio Silva, Wilson Roberto de Mattos e a então reitora da instituição, Ivete Alves do Sacramento. Além dos citados, as pesquisadoras Ana Célia da Silva e Delcele Mascarenhas atuaram na divulgação do sistema implantado na UNEB, frente a demanda por informações de outras instituições de ensino superior no Brasil. São 18 anos de cotas e temos motivos para comemorar e seguir na luta!

O pioneirismo da UNEB na adoção de cotas raciais não foi fruto do acaso. A instituição multicampi foi responsável pela interiorização do ensino superior, com atuação espraiada em 24 cidades do território baiano, que possibilitaram a graduação e, mais recentemente a pós-graduação, para pessoas que não tinham recursos financeiros ou possibilidades de deslocamento para grandes centros. Assim, a UNEB tem oportunizado o acesso à educação de qualidade para grupos populacionais que historicamente não acessavam a universidade. Com a aprovação do sistema de cotas, a UNEB assumiu institucionalmente o compromisso com a promoção da educação antirracista, o que foi reafirmado em 2008 com a inclusão do percentual de sobrevagas para indígenas. Essa política pública mudou a cara da universidade e entre os(as) 23.966 discentes matriculados(as) em 2018, 74,5% eram pretos(as), pardos(as) e indígenas; 66,3% eram mulheres, enquanto o percentual de cotistas entre os(as) matriculados(as) foi de 38,6%.

A despeito da larga experiência da UNEB entre quilombolas, indígenas, ciganos/as e negros/as não se pode afirmar que tal trajetória imuniza a universidade em relação às violências institucionais, como o racismo estrutural. Ao longo dos seus 37 anos, a Universidade do Estado da Bahia acessou conhecimentos forjados na luta de populações que não são valorizadas como produtoras de conhecimento. Nesse sentido, a UNEB vivencia o dilema entre se posicionar pela legitimação de saberes ocidentais, tidos como universais, e o confronto com as perspectivas de mundo dos que habitam em assentamentos, fundos de pasto e periferias.

Interessa, portanto, reconhecer o legado das populações negras e indígenas que adentram os muros da universidade carregando corpos, cabelos, deuses, folhas, giras, itãs e ebós. Assim, defendo que a universidade se fortalece com a entrada de estudantes cotistas que apresentam outros horizontes, possibilidades metodológicas e ontológicas. Ao fazê-lo, questionam a pretensão de objetividade e neutralidade mal sustentada pela ciência, assim como a estratégia de produção de apagamentos, daqueles outrora considerados objetos de pesquisa. Então, o ingresso na universidade para negros/as e indígenas tem possibilitado a disputa pela construção de narrativas em primeira pessoa. Sendo assim, os “nossos camaradas” trazem para o ambiente acadêmico aportes epistemológicos imprescindíveis para o encantamento da universidade, com a potência de torná-la instrumento das lutas que lhes interessam e não espaços para aprisionamentos de corpos e saberes.

As ações afirmativas têm produzido fissuras na universidade, alargadas por profissionais comprometidas com a educação antirracista. Afinal, a UNEB é a universidade em que atuam intelectuais da magnitude de Ana Célia da Silva e Maria Nazaré Mota de Lima; é a instituição que concedeu o título de doutora honoris causa a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi e o de doutor honoris causa ao líder Tupinambá, Cacique Babau; é a casa do Centro Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA) e de grupos de pesquisa como o Candaces, em Salvador; abriga ainda o Centro de Estudos e Pesquisas Intercultural e da Temática Indígena (CEPITI), em Teixeira de Freitas; o Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação (OPARÁ), com atuação em Paulo Afonso, Juazeiro e Euclides Cunha; além de núcleos de pesquisa como o Afro-Uneb, em Santo Antônio de Jesus e programas de pós-graduação como o Mestrado Profissional em Educação e Diversidade, nos campi de Jacobina e Conceição do Coité.

Em seus 18 anos como cotista, a Universidade do Estado da Bahia tem muito a aprender. Em 2018, a instituição manteve o percentual de reserva de cotas para estudantes negros/as, das sobrevagas para indígenas e acrescentou sobrevagas para ciganos, quilombolas, transsexuais e travestis, assim como para pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades. Em 2019 realizou, pela primeira vez, o processo de verificação dos/as candidatos/as cotistas, com o intuito de coibir as fraudes no sistema. Ao saudar a UNEB pelos 18 anos do sistema de cotas é necessário ressaltar os desafios, como a implementação de medidas mais severas para reprimir e responsabilizar fraudadores, assim como investir mais recursos para a permanência de cotistas na graduação e pós-graduação.

Ações como o Programa Afirmativa, que concede bolsas de pesquisa e extensão exclusivamente para estudantes cotistas, têm demonstrado a importância desse incentivo para a produção e difusão do conhecimento, a partir de outras perspectivas epistêmicas. As proposições voltadas para temáticas e campos de atuação de interesses estudantis contribuem para sua inserção em grupos de pesquisa e no exercício de sistematização de dados e formulações teóricas, que extrapolam os debates realizados em sala de aula. Muitas vezes, é na iniciação científica que os(as) cotistas começam a projetar seu ingresso na pós-graduação e/ou reinserção em suas comunidades, acionando as ferramentas construídas pela forma como decidiram utilizar os saberes acadêmicos.

Sendo assim, lutar pela permanência é defender mais recursos para os programas vigentes e para a instituição de outros, o que vai possibilitar que mais cotistas façam pesquisa e extensão. Também é necessário reivindicar pela criação de um programa de permanência para cotistas na pós-graduação, bem como fomento à pesquisa pela agência estadual FAPESB e articulações com órgãos estatais como a SEPROMI. Me refiro, portanto, tanto à ampliação de recursos através da transferência direta para estudantes, como as bolsas, quanto à criação de condições para ampliar o número de proposições de pesquisa e extensão apresentadas por professores(as), o que certamente provocará a ampliação do número de docentes implicados(as) com esse debate em Programas de Pós-Graduação, alargando o número de vagas para que, então, mais estudantes cotistas possam produzir conhecimento nessas áreas, o que por sua vez impactará nas práticas curriculares na educação básica e, também nos campi universitários.

Evidencio, portanto, a complexidade do debate sobre permanência de cotistas na universidade e políticas curriculares comprometidas com a educação antirracista. As ações dependem de ampliação de financiamento, compromisso com o fortalecimento da pós-graduação e políticas de assistência estudantil que extrapolem as necessidades materiais, afinal “a gente não quer só comida”. Reconhecer a densidade da trama é um passo importante para mirar nas disputas políticas em âmbitos interno e externo que precisam ser enfrentadas, sem deixar de reconhecer os passos dados e aqueles(as) que abriram os caminhos.

Para lutar contra as fraudes e brigar por permanência de cotistas na graduação e pós-graduação é imprescindível reconhecer os esforços da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UNEB, criada em 2014. As gestões de Marluce de Lima Macêdo, Wilson Roberto de Mattos e, atualmente, de Amélia Maraux têm enfrentado o desafio de institucionalizar as ações afirmativas na UNEB, ao tempo em que ecoam os anseios de estudantes pela ampliação de recursos e de políticas públicas que atendam ao crescente percentual de cotistas na instituição.

Nos brados contemporâneos que ressaltam a importância das vidas negras e ressoam o papel da educação no combate ao racismo estrutural, é fundamental reconhecer a trajetória da Universidade do Estado da Bahia na luta pela educação antirracista em toda a sua história e, especialmente, nos últimos 18 anos de implementação do sistema de cotas. “Ninguém nos disse que seria fácil”, e ainda assim, desde “o porão de um navio negreiro” vemos “o clarão do giro do mundo”. Portanto, seguiremos firmes no plano de aprender a ler e ensinar nossos camaradas, ao tempo em que reconhecemos que os/as camaradas possuem lentes potentes, que nos interessam como aportes epistemológicos e ontológicos para ler e atuar no mundo, a partir das universidades públicas.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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