200 anos da Independência: Brasil não superou narrativa do povo subalterno

FONTEPor Ana Flávia Magalhães Pinto , do UOL
A Proclamação da Independência, 1844. François-René Moreaux Óleo sobre tela.

Quando o ministro Alexandre de Moraes, atual presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), vetou o vídeo da campanha do governo federal em comemoração ao bicentenário da independência no final de agosto, a preocupação dele era com o “viés político” do conteúdo. Uma vez retirado o trecho que reproduzia um lema da campanha eleitoral do candidato à reeleição pelo PL (Partido Liberal), o veto caiu e a propaganda ficou. A exibição, aliás, foi iniciada no último domingo (4).

Estava solucionado o impasse do “viés político” do material? Certamente, não! Mas não se preocupem. Meu incômodo não está assentado na manutenção de eventuais artimanhas meramente eleitoreiras. Política também é algo que atravessa e é atravessada pela maneira como pensamos, posicionamos sujeitos, mobilizamos memórias, produzimos esquecimentos e até mesmo elaboramos sobre tudo isso. Ela se faz não apenas na superfície das palavras e frases.

Por isso, leitoras e leitores, estou mais preocupada com o problema de forma e fundo histórico que nos demanda uma observação atenta da estrutura e de detalhes do vídeo. Afinal, este é um momento em que milhões de cidadãos e cidadãs estão sendo mobilizados a criticar ou reforçar seus entendimentos sobre a história deste país.

Um vídeo histórico por quê?

O roteiro é relativamente simples, embora denso e carregado de dramaticidade. Ao longo de um minuto, é exibida uma profusão de imagens de rostos, mãos e silhuetas de pessoas — em sua maioria mulheres e boa parte delas pretas e pardas —, enquanto uma voz masculina empostada, acompanhada de um fundo musical solene, narra o seguinte texto:

Brasil, a nação de um povo heróico. Somos, há 200 anos, brasileiros independentes graças à coragem constante. Somos e seremos sempre. Porque a mesma coragem que correu no sangue de Dom Pedro corre ainda hoje em milhões de Pedros espalhados pelo país inteiro. A mesma bravura de Maria Quitéria corre por Marias brasileiras, que ganham mais independência. Somos milhões de Josés Bonifácios, Leolpoldinas, de Duques de Caxias, gente aguerrida que a história tentou, em vão, fazer desaparecer. Somos todos heróis da independência. Nas nossas casas, no nosso dia a dia, no nosso país. Somos uma nação que escreve um futuro melhor e sente orgulho de ser independente. Duzentos anos de Independência do Brasil. O futuro escrito em verde e amarelo”

As imagens do povo, reconhecido em termos de raça/cor e gênero, são mobilizadas para legitimar uma narrativa em que brasileiros e brasileiras aparecem como sujeitos decorativos. Tais pessoas figuram como elementos cênicos necessários para demonstrar a grandeza dos personagens apontados como protagonistas de fato: Dom Pedro I, Maria Quitéria, José Bonifácio, Leolpoldina e Duque de Caxias, todos brancos, majoritariamente homens. São eles que dão a medida da nação independente há dois séculos. Esses são os modelos que servem de referência para uma população de maioria negra e feminina, conclamada a se ver em espelhos que não refletem sua imagem.

Sendo essa a estrutura narrativa do vídeo, a referência à “gente aguerrida que a história tentou, em vão, fazer desaparecer” é mais do que controversa. É político-ideológica. Ela se conecta a uma tradição historiográfica que remonta ao século 19, que reconhece a existência desse mesmo povo, embora o enquadre quase sempre como um problema nacional ou um espectador da agência de outros.

“Como se deve escrever a história do Brasil”

Pouco depois da fundação, em 1838, e cerca de vinte anos após o marco de reconhecimento da independência nacional, em 1822, o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) promoveu um concurso para selecionar a melhor proposta de manual sobre “como se deve escrever a história do Brasil”. O trabalho premiado foi o de autoria do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, escrito em Munique em janeiro de 1843 e publicado na revista da instituição brasileira em 1845.

O cientista havia estado no Brasil entre 1817 e 1820, como integrante da missão austríaca que acompanhou a princesa Leopoldina na ocasião do casamento com D. Pedro I. A curta estadia de Carl von Martius em terras brasileiras, porém, não comprometeu a sintonia com os anseios dos proponentes da empreitada, e seu texto se tornou uma referência para políticas de memória e escrita da história ainda vigentes na atualidade.

Tal como se vê no vídeo do governo federal de 2022, o manual não propoõe, ao longo de suas 23 páginas, a promoção do completo apagamento da presença dos segmentos negros e indígenas das narrativas sobre a história do Brasil. Os dois grupos populacionais tanto estavam previstos quanto eram imprescindíveis para a demonstração da superioridade da “raça portuguesa” sobre as demais.

Nas palavras do alemão, foi “o português que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente” e que “se [apresentava] como o mais poderoso e essencial motor”. Ao mesmo tempo, ainda nos termos empregados pelo naturalista, “seria um erro para todos os princípios da historiografia-pragmática, se se desprezassem as forças dos indígenas e negros importados”. Eles representavam os desafios superados e/ou em vias de ser pela empresa portuguesa neste lado do Atlântico.

O texto de von Martius, embora escrito próximo aos vinte anos da independência, não se dirigia ao povo. Mesmo assim, ele era pensado como orientação para se estruturar narrativas que pudessem acionar um sentimento de nacionalidade que apaziguasse tensões. Não por acaso, à semelhança do vídeo do governo federal, em 2022, Von Martius também acreditava que “a história é uma mestra, não somente do futuro, como também do presente”. Era assim que o passado deveria ser acionado na opinião dele e parece ser para muitos ainda hoje.

No centenário da independência, também coube falar de negros e indígenas

Por ocasião do centenário da independência em 1922, muitas expectativas foram geradas em torno da visita do presidente português Antônio José de Almeida. Ocorre, porém, que em decorrência de problemas com o navio, o chefe de Estado europeu chegou vivo e inteiro, mas dez dias atrasado para as comemorações da afirmação da soberania da antiga colônia, à época presidida por Epitácio Pessoa.

Isso, por certo, não impediu que muito fosse dito e escrito em conferências públicas e jornais de todos os espectros políticos. Na maioria desses discursos, também é possível perceber a influência da matriz narrativa proposta por Carl von Martius 79 anos antes.

Um exemplo emblemático foi registrado como opinião do jornal carioca “O Paiz”, na edição da quinta-feira, 7 de setembro. Afora exaltar as figuras que seriam destacadas no vídeo do bicentenário, aproveitou-se ali oportunidade de, reverenciar até mesmo o sentimento protonacionalista da “República de Palmares”, bem como reconhecer “as manifestações iniciais de apego ao solo nativo” que “refulgiram na alma insubmissa do índio Poty, no heroísmo do negro Henrique Dias, na legendária bravura do branco Francisco Rabello, três modalidades típicas da raça que se formava lutando pela defesa do berço natal”.

O reconhecimento dos esforços de indígenas, africanos e seus descendentes mais uma vez, porém, não abalou a matriz explicativa que orientava a leitura do tempo presente. E, novamente, as marcas da presença desses grupos populacionais foi lida como um descompasso com as melhores aspirações nacionais:

O contingente demográfico resultante da fusão da raça autóctone, da raça negra introduzida pelos traficantes escravistas da época colonial, e da raça branca colonizadora, [isso] tem demorado a formação étnica definitiva do país e, pois, de algum modo, retardado a sua evolução no sentido econômico-social, devido à ausência de um padrão mental dominante e dirigente”

E depois do bicentenário?

A exemplo do que aconteceu nos 500 anos da invasão portuguesa, no centenário da abolição e nas comemorações de outras efemérides, neste bicentenário da independência do Brasil diferentes sujeitos estão se posicionando nos espaços públicos em defesa da afirmação de suas/nossas existências como coletividades historicamente construídas. O simples registro da presença de grupos subdimensionados em narrativas hegemônicas — em especial, mulheres, populações negras e povos indígenas — já se mostra insuficiente. Uma das muitas perguntas que ficam é: Que histórias seremos capazes de contar como nação daqui a cinquenta anos?

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