A angústia da mulher preta tem origem no meu privilégio de mulher branca

FONTEUniversa, por Natalia Timerman
Bianca Santana, autora de "Quando me descobri negra" - Imagem: Bruno Santos/Folhapress

“Posso te fazer um pedido?”

Sim, Bianca Santana, você pode me fazer quantos pedidos quiser. Pode pedir, ao final de seu “Quando me descobri negra“, que eu tente não me repetir, que eu jamais repita as vezes em que fui racista, mesmo sem querer. Você é gentil: “Não precisa contar para ninguém”. Você sabe que o racismo é uma engrenagem na qual fomos lançadas ao nascer, eu e você, cada uma de um lado. E generosamente me mostra as marcas que o meu lado deixou e ainda deixa no seu. Muito generosamente: porque é tarefa nossa, dos brancos, nos educarmos e mobilizarmos contra o racismo antinegro, um problema causado por nós.

Quem pergunta a você se pode te fazer um pedido são pessoas brancas, é claro, que te abordam enquanto você espera uma amiga sair do banheiro em um café. Quem te pede informações sobre um lugar no qual você foi convidada para se apresentar, presumindo que você trabalhava lá, também. Eu tenho certeza de que o aperto que senti te lendo não chega nem perto do que te atravessou quando você viveu essas situações. Mas é importante que eu sinta esse aperto, porque sua angústia tem origem no meu privilégio. Lembro de uma vez em que entrei no metrô segurando uma cerveja, acho que era Carnaval ou alguma outra comemoração. Ninguém me parou, mas pararam dois rapazes negros que seguravam suas cervejas logo depois de mim. Assim vivemos a vida, você e eu, e ao longo dos anos tudo me dizia que eu podia, enquanto tudo te dizia o oposto. Ou quase tudo.

Pois seu livro escapa de maniqueísmos, ainda que a realidade na maior parte das vezes não o faça. A realidade: toda pessoa branca desfruta de privilégios em uma sociedade que se ergueu escravizando pessoas negras. O racismo sobrou, assim como as construções. O seu livro: há nuances que não chegaram até nós; há nuances, precisa haver. “Nenhuma rainha embarcou no navio por conta própria para acompanhar seu povo no navio negreiro? Com a missão de cuidar das pessoas pelo caminho e chegar aqui para organizar a luta? Da mesma forma como meu corpo guardou a cor da pele, os traços e a textura do meu cabelo, ele guardaria essas informações como herança? Com essas informações, eu poderia reescrever a história? Não em um livro de história.”

“Quando me descobri negra” foi publicado pela primeira vez em 2015 e reeditado recentemente pela Fósforo. Dividindo-o em três partes, a primeira, vivida, a segunda, escutada, e a terceira, inventada, você consegue, em tão poucas páginas, abarcar o que foi, o que é e o que pode ser; consegue dizer o absurdo, a potência e a esperança. No parágrafo de abertura do livro você elenca Marielle Franco, Beto Freitas, George Floyd, Ágata Félix, Kathlen Romeu, o menino Miguel, todos mortos de racismo, e em seguida as afirmações negras antirracistas e a Coalizão Negra por Direitos. Aponta a ferida e dá o mapa para que outras não aconteçam.

Há muito trabalho pela frente. Estudos recentes mostram, por exemplo, que negros são alvo de prisões com baixo número de provas e são mais abordados pela polícia do que brancos, o que resulta no trágico fato de que a população negra encarcerada atingiu o maior patamar da série histórica. Os destruidores dentes da engrenagem do racismo na qual fomos lançadas ao nascer, eu e você, cada uma de um lado.

Só posso te agradecer, Bianca. É muito bom quando, em tempos de palavras gastas, um livro é necessário de verdade.

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