A Branca Benfeitora

FONTEFabiane Albuquerque, enviado para o Portal Geledés
Fonte: Shaih Norway

Muito falamos das Imagens de Controle das mulheres negras, criadas pela branquitude durante o período colonial e, como o nome já diz, para nos controlar e assim utilizar dos nossos corpos. Além disso, as imagens criadas sobre e para as mulheres negras tem também como função sustentar a imagem de si da branquitude e das classes privilegiadas, como por exemplo, aquela da superioridade. Lélia Gonzales  (brasileira) e  Patricia Hill Collins (estadunidense) são duas feministas negras que apontaram a construção dessas imagens e as identificaram, desnudando como elas operam. E são elas: a negra raivosa, a jezebel ou prostituta, a mammy, aquela que cuida de todos e está sempre a disposição, como a Anastácia, do sítio do pica-pau amarelo, a mula ou  burro que carga, igualada aos homens no trabalho e pouco feminina,  a mulata de exportação, no caso brasileiro e a serva ou doméstica.  Que mulher negra já não foi confundida com a empregada, a babá ou  a vendedora da loja? 

Essas imagens foram criadas dentro de um sistema colonial que precisava de uma ideologia para nos manter no lugar da submissão e servidão e assim justificar a superioridade da raça branca e a exploração do trabalho negro.  Mas hoje não vou aprofundá-las aqui, aliás, temos muita bibliografia sobre o tema, mas pouco falamos das Imagens da Branquitude, criadas para si e sobre si, com o objetivo de cultivar o narcisismo e afirmar-se na sociedade. Os homens brancos burgueses tem as suas, como a  de “Cidadão de bem”,  “Engenheiro” ou “Desembargador com contatos”, tema para outra reflexão. Nesse texto quero falar da imagem feminina da  “Branca Benfeitora”

Mesmo muitas delas tendo baixíssimo nível de estudo ou de cultura, isso não é importante, a branquitude que carregavam era em si um capital social que as legitimavam.

Game of Thrones – HBO

Eu fui freira por quase 9 anos em um convento católico de origem alemã e vi como muitas missionárias europeias, vindo “servir” o povo brasileiro, serviam o próprio Ego nas terras tropicais, pois sentiam o gosto do privilégio de serem brancas e europeias, sobretudo o gosto da bajulação, da sua subserviência do povo diante de tudo que elas faziam ou diziam, mesmo as mais aberrantes coisas. Enquanto nos seus países de origem, eram somente mais uma, no Brasil ou no Congo e África do Sul, onde morei, eram aquelas que ensinavam, catequizavam e moralizavam, mesmo muitas delas tendo baixíssimo nível de estudo ou de cultura, mas isso não era importante, a branquitude que carregavam era em si um capital social que as legitimavam. E quando tinham olhos azuis, então? Ahhh quanta adoração o povo devotava! 

Privilégio é um bicho traiçoeiro, diria meu povo sertanejo, ele faz mal quando em ação somente aos que não o possuem e provoca uma enorme satisfação e um gozo narcísico em quem o tem e o exerce e, quanto mais resultado traz para si, mais necessidade de aplicá-lo. Algumas dessas mulheres buscavam a bajulação e o afago a tal ponto que não conseguiam mais viver longe disso, nos seus países de origem, por exemplo, pois se tornaram tão dependentes dessa imagem que para justificar aquilo que elas chamavam de “calor” e “cordialidade brasileira”, recorriam à ideia de que eram indispensáveis enquanto benfeitoras. 

Muitas mulheres brancas, europeias ou brasileiras das classes privilegiadas, sό se enxergam nessa imagem e fazem de tudo para mantê-la, procurando insistentemente reconhecimento, afago e admiração em pessoas ou grupos que as coloquem nesse lugar da “bondosa”, da “professora”, da “conselheira”, daquela “que se mistura com nόs”, com síndrome de vira lata.

instagram/barbiesavior

Uma das formas de manutenção da imagem da “Branca Benfeitora” no Brasil se dá através do costume de pegar meninas pobres para “criar” e, além da exploração dessa mão de obra, essas meninas ou mulheres, geralmente negras, servem para a cultivação da imagem da Branca Benfeitora. Quantas mulheres encontrei pelo caminho que se gabavam  em dizer que aquela que pusera dentro de casa para a cultivação de si era “quase da família”. Mas quando a moça se rebelava, rompendo a imagem da benfeitora, era considerada ingrata, arrogante, sobretudo quando mostrava independência de pensamento e vontade própria, ferindo de consequência o Ego da mulher branca.  

Muitas passam a vida se vangloriando dos trabalhos voluntários, tirando e postando fotos com grupos marginalizados, entregando cestas básicas junto aos corpos inferiorizados e maltratados, pois o direito à privacidade não existe diante da sua necessidade de se mostrar boa, moralmente superior, culta e útil.  Também não poupa palavras para contar sobre as pessoas que ela ajudou na vida, sobre suas obras de caridade, participação em Associações ou Organizações, mas quando as oprimidas se empoderam, elas se voltam com tamanha fúria e violência, fazendo-se de vítimas e apontando raiva naquelas que não mais as reconhecem.

É um fetiche. E por fetiche a autora do livro Couro Imperial, Anne Mclintock, entende um “deslocamento para um objeto (ou pessoa) de contradições que a pessoa não pode resolver no nível pessoal” e continua “ao deslocar o poder para o fetiche, e então manipular o fetiche, o indivíduo ganha controle simbólico sobre o que, de outra maneira, seriam ambiguidades terrificantes. Por essa razão,o fetiche pode ser chamado de objeto apaixonado”. Para a autora, os fetiches se originam das contradições sociais.

A Branca Benfeitora se intromete em tudo e em todos os assuntos, considerando-se essencial e indispensável, onipresente e onisciente nas relações, o centro do mundo e faz de tudo para direcionar os holofotes para si. E quem é prisioneira dessa dinâmica  alimenta o seu fetiche e vê sua vida girar em torno dela, pois ela dita o que se deve pensar, como agir, sentir ou falar.  E quando está “brilhando” em alguma situação onde as pessoas as bajulam e de repente alguém interrompe o ritual narcísico? É como tirar o doce da boca de uma criança, de uma criança enfurecida. Ela não aceita ser questionada ou sequer aprender dos sujeitos que ela elege como destinatários da sua “bondade” e “sabedoria”. A branca benfeitora não vai abrir mão do seu lugar de privilégio e não aceita ser incomodada com os “gritos” dos subalternos e é importante lembrar: negra boa para ela é a negra que não reclama, que a adora. 

A Branca Benfeitora pode até querer direitos iguais, políticas públicas e votar na esquerda, mas no fundo no fundo, ela gosta da desigualdade para manter-se no lugar da bondade para com os mais necessitados. Conheci algumas mulheres burguesas europeias que adoram estar no meio de brasileiros (as), latinos ou pessoas de países africanos, pois é o lugar onde elas possuem um “valor a mais”, pois entre os seus conacionais, a branquitude não é um diferencial e ela precisa se esforçar muito mais se quiser impressionar. Como a Branca Benfeitora ama um sambinha e uma feijoada alla brasileira, de preferência com um público que a adora ver dançando desengonçadamente ou falando português com sotaque de gringa! Isso para ela é o paraíso, minha gente! 

A notícia boa é que sua imagem depende de nόs para ser mantida e cultivada, por isso é frágil. De nossa parte, não existe liberdade e emancipação se não quebrarmos todas as correntes que nos aprisionam, aquelas que ficaram da escravidão e das relações coloniais como essa da Branca Benfeitora. E vejo que muitas mulheres negras e das classes populares estão fazendo isso, isto é, estabelecendo relações com mulheres brancas burguesas, brasileiras ou europeias de forma a confrontá-las, desmontando palanques e pedestais, e isso tem desorientado muitas delas. E se quiserem relações novas, estamos dispostas, as velhas roupagens, deixemos para os bajuladores. Daqui desse ângulo onde vejo o mundo, como diz bell hooks, da margem, dá para assistir às crises de identidades, aos chilique, às acusações de que somos raivosas e a incapacidade de muitas de argumentar quando as questionamos com frases do tipo “Querida, não é sobre  você”. Para elas, a sensação é de que estão perdendo o seu lugar no mundo. Mas para lembrar a frase da psicanalista Maria Homem “Quem disse que o lugar era seu?”

Fabiane Albuquerque
(Arquivo Pessoal)

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia pela Unicamp

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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