A canção “Cassius Marcelo Clay” e a obra afrodiaspórica de Jorge Ben

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado para o Portal Geledés
Jorge Ben (Foto: Ricelli Piva/Divulgação)

A efervescência política e cultural que perpassou os cotidianos das populações afrodiaspóricas pelo mundo entre os anos 1960 e 1970, não passou despercebida no Brasil, mesmo em pleno período do regime ditatorial cívico-militar, tendo na obra de Jorge Ben uma de suas mais significativas e originais expressões. Um conjunto estético e político em constante diálogo – sendo influenciado e influenciando – com as modernas contemporaneidades de identidades afrodescendentes que se faziam constituir e manifestar-se pelo mundo, enquanto reflexo daquele período histórico de manifestações desenvolvidas a partir das experiências destas populações situadas no chamado mundo ocidental, desde os processos de revoluções anticoloniais no continente africano; da constituição das cenas de cinema e música moderna africanas pós década de 1950; dos movimentos de literatura e poesia, passando pelas expressões de libertação anticoloniais nas Antilhas e Caribe nos anos 1950/1960; dos movimentos políticos-culturais (Rock and Roll; Bebop; Free Jazz; Soul Music; Movimentos Civis; Black Power; Black is Beautiful) de origem afro nos Estados Unidos a partir de meados dos anos 1950, que acabariam por ressignificar e em certo sentido radicalizar o ideário político e cultural de negritude desenvolvido por imigrantes africanos, antilhanos/caribenhos e africanos, como Léopold Sédar Senghor (1906-2001) e Aimé Césaire (1913-2008), na França na década de 1930.

Jorge Ben, um artista rotineiramente classificado enquanto músico extraordinário, mas compositor de poética ingênua e simplista – ao nosso ver de maneira equivocada e preconceituosa – por grande parte de nossa crítica musical e estudiosos culturais, um sujeito artístico apolítico, quando não alienado, em comparação aos seus pares de geração como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, foi aquele que estabeleceu musicalmente nos anos 1960 a inserção da cultura afro-brasileira a esse universo de modernidade da diáspora africana. Através de sua imagética poética eminentemente popular, de valorização e enaltecimento das historicidades e ancestralidades afro, a partir de suas vivências pelos morros e subúrbios cariocas, desenvolveu um conjunto artístico que passa ao largo da herança e estrutura parnasiana que influencia decisivamente, mesmo que para a sua negação(1), as maiorias do cancioneiro brasileiro de então, com suas métricas rígidas, de rimas estruturalmente ortodoxas e não flexíveis.

Uma forma de originalidade criativa e poética de cunho afro-brasileiro suburbano, que sofre uma radicalização em sua estética e imagética, quando para além de seu “samba misto de maracatu”(2) incorpora os elementos do improviso jazz, das harmonias e notas soul, da rítmica e arpejos do blues, além da maior ênfase aos elementos dos batuques ao seu toque de violão, o que acarretou uma mudança ao seu cantar, e correspondia ao seu anseio em não se deixar rotular em quanto artista e, principalmente, homem negro que queria cantar os cotidianos dos seus, suas vivências e experiências de acordo com o seu próprio recorte artístico, dialogando com os movimentos musicais ao seu redor, como a Bossa Nova, a Jovem Guarda, a Tropicália, mas de maneira autônoma e independente, sem abrir mão de sua liberdade artística e criativa e sem se deixar medir ou ser definido por outros.

O que acreditamos tenha influenciado em muito a sua decisão de passar a trabalhar em sua poética e imagética, temas e referências oriundos das expressões artísticas e políticas negras internacionais. Em pleno regime de exceção democrática, que não admitia a existência do racismo em terras brasileiras e interpretava as lutas e manifestações antirracistas e pró negritude enquanto ações subversivas visando a destruição da unidade social e cultural brasileira através da valorização de assuntos externos a nossa realidade histórica enquanto povo e nação, Jorge Ben coloca em xeque, questiona e confronta o nosso ideário de democracia e harmonia social, através de uma série de álbuns(3) que acabariam por influenciar toda uma nova geração de artistas pelas décadas seguintes e também acabaria por ser influência cultural e política aos processos de rearticulação de jovens sujeitos sociais afrodescendentes que acabariam por constituir aquilo que viria a ser definido como “novos movimentos negros no Brasil”. O que acreditamos ser um exemplo que rechaça a definição desta obra enquanto alienada e apolítica, um conjunto artístico e estético não devidamente estudado e valorizado, aquém das suas importâncias e qualidades, aquém das transformações políticas e sociais que acabou por demarcar na sociedade brasileira.

Uma das canções que melhor exemplifica esta fase da obra beniana, da inserção de sua obra enquanto inerente ao conjunto político e cultural afrodiaspórico internacional e ao mesmo tempo de contestação e negação ao ideário de democracia racial e harmonia social promulgados pelos governos ditatoriais do período em questão, é “Cassius Marcelo Clay” (faixa 03:1971), em que Ben realiza homenagem direta ao então campeão destituído dos pesos pesados Muhammad Ali(4), por sua oposição a guerra do Vietnã e enfrentamento sistemático ao racismo estrutural norte-americano. Sendo apresentado enquanto um super-herói, um campeão e defensor do povo, combatente de todo mal(5), nesse caso o racismo representado por seu próprio governo:

“Cassius Marcelo Clay,
herói do século vinte, sucessor de Batman/
Sucessor de Batman, Capitão América e Superman”

Tão grande em significado e importância quanto os heróis, os super seres combatentes de todo mal e perigos, DC e Marvel, enquanto referenciais da cultura pop mundial, símbolos de heroísmo e hombridade. Destacado enquanto o maior de todos, o primeiro, o “maioral”(6), aquele irmão que mesmo distante territorialmente, também nos defendia, pois era/é um de nós, daí a descrição de sua práxis boxer similar ao desfile cadenciado e elegante das escolas de samba – a época uma forma de expressividade cultural negra associada a liberdade e potência criativa, antes do processo de alienação cultural e de sua transformação em um produto de consumo massificado, iniciado em final dos anos 1970 e consolidado em meados dos anos 1990 – e a exuberância e plasticidade características das equipes futebolísticas brasileiras da época, não por acaso ambas formas de expressões culturais e sociais comumente associadas enquanto formas de vivências e experiências negras no Brasil.

“Cassius Marcelo Clay, o primeiro
Tem a cadência
De uma escola de samba
E o 4-3-4 de um time de futebol”

Uma referência de resistência negra mundial, de luta antirracista e antisistemica, para todas as populações negras espalhadas pelo mundo, um exemplo da beleza e orgulho negro. Jorge Ben canta Muhammad Ali enquanto um Narciso renascido, negro e contemporâneo, contestador, sendo aquele que desestrutura a todas as ordens constituídas em benefício e proteção aos seus, profeta de uma nova era que se fazia anunciar, inimigo número um do “Sistema”, um brigador incansável pelo seu povo, um verdadeiro rei. O único e verdadeiro “campeão do povo”!

“Salve Narciso Negro, salve Muhammad Ali, salve Fighty Brother,
Salve King Clay
O eterno campeão, na realidade um ídolo mundial”

Uma composição que desde o seu início é ritmicamente estruturada simulando uma rinha de boxe, e ao chegar a metade da mesma, abre espaço para uma improvisação musical, em que Jorge Ben acompanhado pelo Trio Mocotó, mistura samba, batuques e jazz, transformando o próprio violão em instrumento percussivo, executando uma série de falsetes e gritos, emulando um combate de Ali contra um inimigo que acaba nocauteado ante ao grande campeão. Uma alusão a conquista do fighty boxer em recuperar a sua licença de boxeador, vencendo sua disputa com o grande monstro racista representado pelo “Sistema”, sendo dessa forma um símbolo de luta antirracista para as populações negras do planeta?

Canção esta, que em sua parte final, passar a destacar um homem que pela sua postura e seus feitos, por sua coragem heroica se faz tão importante e simbólico enquanto a representação viva máxima da liberdade nos Estados Unidos, sendo por isso a sua pose típica de vitória aludida a “Estátua de Liberdade”, tão gigante quanto a época o maior edifício do mundo, oriundo e representante de toda uma nova geração negra, de novos ativismos e ideários culturais e políticos de representação afrodescendente, insurgentes e inquietas, mas ao mesmo tempo poéticas e libertárias, quanto a soul music.

Tem a postura da estátua da liberdade
E a altura do Empire State
Salve Cassius Marcelo Clay
Soul brother, soul boxer, soul man

Assim demonstrando o quanto a luta pelo racismo, a luta pela (re)construção de negritudes contemporâneas, de constituição de identidades afrocentradas é uma batalha árdua que por vezes se manifesta enquanto, aparentemente, impossível de ser alcançada, mas que se faz imprescindível para todas as pessoas que queiram realmente a construção de uma sociedade verdadeiramente livre, radicalmente democrática, igualitária e socialmente justa. Inclusive no Brasil, sociedade estruturada e desenvolvida para negar seus conflitos e discriminações, desvalorizar, desqualificar ou ignorar as existências e potências de saberes e vontades que não aceitem ou sejam situadas na busca incessante de nossas elites em construir nos trópicos uma nação europeia de corpo e alma, que por isso chega ao extremo de constituir um sistemático processo de genocídio das populações “não brancas”, em especial as negras, ao longo de sua história. E Jorge Ben, desenvolver toda uma obra tendo esta temática como uma de suas principais referências conceituais, apesar do desprezo de grande parte de nossa intelectualidade para com seu conjunto poético-artístico, é um dos fatos mais notáveis, instigantes em meio a cultura nacional a partir da segunda metade do século XX. Sendo “Cassius Marcelus Clay” canção que sintetiza essa complexidade e originalidade da obra beniana.

O que para um autor considerado alienado ou ingênuo – com todas as negatividades e preconceitos que tal expressão carrega, em especial quando dirigidas a pessoas negras, numa sociedade de origem escravista, o que nos revela o quanto essa obra e seu autor são balizadas por um olhar analítico enviesado por recortes depreciativos e, até mesmo, racista, até os dias de hoje – não é nada mal! Quantas autorias artísticas poderiam trilhar caminhos tão inusitados, mas tão surpreendentes em complexidades e sutilezas, importâncias e significados quanto as de Jorge Ben? Quantas obras poderiam ser incorporadas aos cotidianos familiares, passando de geração em geração, muitas vezes longe das grandes mídias, e acabar influenciando novas práxis políticas e culturais de um país de diversidades infinitas e tamanho continental como o Brasil?

Acredito que poucas, muito poucas… E Jorge Ben, o homem que há décadas toca o “samba de preto velho/samba de preto tu”, é o arquiteto e dono de uma delas!

Ontem, hoje e sempre, VIVA JORGE!

Notas Bibliográficas:
(1) Como por exemplo o movimento tropicalista, que tinha como uma de suas metas desenvolver a música moderna brasileira para além de nossa herança poética parnasiana, característica contestatória influenciada diretamente pela liberdade poética e criativa das composições de Jorge Ben.

(2) Trecho presente ao verso “Este samba que é misto de maracatu/É samba de preto velho/samba de preto tu” de “Mas que nada” (faixa 1: 1964) sua primeira canção gravada e um de seus maiores sucessos de sua carreira, presente ao álbum “Samba Esquema Novo”

(3) Dos quais fazem parte os álbuns “BEN” (1972); “Jorge Ben – L’ Stage” (1971a); “Negro é lindo” (1971b); “Força Bruta” (1970); “Jorge Ben” (1969); “O Bidú – Silêncio no Brooklin” (1967).

(4) Nome adotado por Cassius Marcelo Clay (1942-2016) para sinalizar sua conversão ao islã e a negação em usar um nome de escravo, simbolizando a sua libertação plena enquanto homem negro na sociedade norte-americana da década de 1960.

(5) Uma condição de super-herói inerente a figura pública de Mohamad Ali que resultaria na publicação da História em Quadrinho (HQ), intitulada “Superman vs Muhammad Ali” em 1978, pela DC, na qual pela trama, para salvar o planeta Terra de uma invasão alienígena, o “campeão do povo” acaba por enfrentar e vencer o “último filho de Kripton”, o que não deixa de destacar o tamanho da importância e significado que Muhammad Ali atingiu dentro da sociedade norte-americana.

(6) Referência a um dos apelidos de Muhammad Ali, que lhe foi atribuído pelas comunidades negras dos Estados Unidos.

Referência Áudio-Visual:

BEN, Jorge. Ben. Gravadora: Universal Music, 1972.
BEN, Jorge. Jorge Ben – L’ Stage. Universal Music, 1971a.
BEN, Jorge. Negro é lindo. Gravadora: Phillips, 1971b.
BEN, Jorge. Força bruta. Gravadora: Phillips,1970.
BEN, Jorge. Jorge Ben. Gravadora: Phillips,1969.
BEN, Jorge. O Bidú – Silêncio no Brooklin. Gravadora: Movieplay, 1967.
BEN, Jorge. Samba Esquema Novo. Gravadora: Phillips, 1964

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile