A classe média branca brasileira no aeroporto de Lisboa

FONTEPor Fabiane Albuquerque, enviado ao Portal Geledés
Fabiane Albuquerque e “Cartas a um homem negro que amei”. (Fonte: Arquivo FA)

Sou uma mulher negra, oriunda da periferia de Belo Horizonte e viajo entre o Brasil e a Europa há alguns anos. A passagem pelo aeroporto internacional de Lisboa é quase sempre obrigatória, visto o menor valor do bilhete para algumas cidades brasileiras e o maior número de voos. Pois bem! Sempre que posso, evito, pois, encontrar a classe média branca, não me traz alegria. Pelo contrário, é constrangedor. Cada passagem é um tormento, pois é ali, na fila para o balcão de atendimento ou naquela de embarque, que a branquitude da minha pátria amada (e ferida) se revela, sem véus. 

Lembro-me de um voo que peguei de Lisboa a São Paulo em 2017, período difícil para a política brasileira. Viajei ao lado de uma senhora que deveria ter setenta anos. Ela fez questão de dizer morar em Higienópolis, bairro nobre da capital paulista e que tinha casa na cidade de Porto. O assunto, naquele período, era quase sempre o ódio ao Lula, para esconder aquele de classe. Conversa vai, conversa vem, ela diz: “O Lula era o único que não podia ter roubado. Eu odeio o Lula, ele traiu o país.” Ora, bolas! A sua frase causou-me indignação. Ela não estava condenando a corrupção, ela estava dizendo que Luís Inácio Lula da Silva (um Silva para a burguesia) era o único que não podia, por vir da classe trabalhadora. Retruquei perguntando se o Fernando Henrique Cardoso podia e ela, inacreditavelmente, respondeu: “Ele não precisa, já nasceu rico”. Como socióloga, colega de profissão do ex presidente do PSDB, disse que ele não nasceu rico, era professor universitário. Ela calou-se, como se não tivesse mais nada a dizer e virou-se para o lado. O seu corpo denunciava a sua ideologia: cheia de ouro nos dedos e no pescoço, cabelo alisado e forçadamente louro, Botox para todos os lados, em contraste com as mãos enrugadas que fazia questão de não tocar o meu corpo. Terminamos a viagem em silêncio. 

Em outra ocasião, em 2022, na fila para o embarque junto com o meu filho, uma senhora idosa, aproximou-se de mim e, sem ao menos perguntar o meu nome, começou a desabafar: “Eu nunca mais viajo com nora. Fiz esta viagem com o meu filho e a esposa. Foi um inferno…” Olhei para os lados, incrédula pela sua falta de noção. Queria lhe responder: “Te perguntei algo?” Mas não o fiz e arrependo-me. Ela continuou a lamentação e eu fiquei pensando qual teria sido o critério para me escolher entre dezenas de outros brasileiros, já que ela não estava  perto de mim, foi se aproximando aos poucos. Bem, o meu corpo negro e os meus cabelos crespos evocam a imagem da “mãe preta” ou da “mucama de companhia”, aquela que ouve os desabafos das sinhás, acolhem, bajulam e acariciam as suas dores fúteis, enquanto lidamos com as nossas, infinitamente maiores. Sem lhe dar o que ela queria, virei para a frente e a deixei falando sozinha. Faz tempo que não dou o que mulheres brancas das classes médias querem: cuidado e atenção. Sai da posição que as minhas ancestrais ocuparam por séculos e não cedo um milímetro nos passos que andei até aqui.

Neste mesmo dia, a funcionária da companhia TAP passava pedindo o passaporte aos brasileiros. Uma senhora gritou para que todos ouvissem: “Eu tenho os dois, sou cidadã portuguesa”. A moça respondeu: “Eu só preciso daquele do Brasil”. Muito sem graça, ela cedeu-o e um grande adesivo indicando que tinha sido vacinada foi colado atrás dele. No meu, no dela, e no de todos ali. Éramos todos brasileiros, sem distinção. Naquele momento, os portugueses estavam dizendo que pouco se importavam quanto ela ganhava, qual bairro morava e se as suas roupas eram melhores e de marca. Ela, não satisfeita com o descaso para com a sua tão importante cidadania portuguesa, virou-se na fila, procurando alguém que a reconhecesse: “eu não entendo, e se eu não tivesse o passaporte brasileiro? Não poderia viajar porque sou portuguesa também?” A coitada falava sozinha, quase implorando para que alguém lhe estendesse um tapete vermelho pela sua nacionalidade gringa. 

Nestas horas, os portugueses gozam, pois, racistas que são, não veem a hora de humilhar brasileiros, de participar do poder de colonizador que a Europa do Norte lhe nega. Nunca vi um aeroporto tão racista na Europa quanto aquele de Portugal. Brasileiros ali piam fino, não importa quanto dinheiro têm na conta bancária. E, ser branco, não salva ninguém da xenofobia. E, não confundamos xenofobia com racismo. Portugueses detestam brasileiros, sejam brancos ou negros. E, detestam, em particular, negros, pois são racistas até o miolo.

E não é só dos discursos, reveladores de uma classe média que se identifica mais com o colonizador que com as próprias raízes populares. São as roupas, os corpos, a estética. Eu fiz um vídeo há alguns anos falando da “loiricização da sociedade brasileira”. Ali na fila, a gente vê o quanto o país gasta com tinta amarela de todas as tonalidades. E, não basta ter um tênis Nike da última moda, é preciso que o Nike brilhe, chegue primeiro que a pessoa, tenha até salto e anuncie o dono do sapato chegando. E os moletons da Adidas? O símbolo tem que ser tão grande para parecer um cartaz de empresa colado na roupa. As malas e bolsas de marcas embarrando nas pessoas, aquele cheiro de perfume competindo para ver quem tem o mais caro. É tanta tralha que a fila de embarque parece um Shopping Center na Black Friday. 

Um amigo negro de Recife, que mora na França, pegou esta fila no final de janeiro para passar o carnaval 2024 no Brasil. A sua mensagem foi a seguinte: “cheguei ao Brasil. Quando entrei na fila do avião em Lisboa, estava despachando a minha mala de mão, pois não havia mais lugar e começou o show da classe média. Um homem gritou dizendo que ele tinha sessenta mil reais na sua e não podia despachar. Uma mulher disse alto e em bom-tom que a sua mala era da Louis Vitton e, de jeito nenhum, iria viajar sem ela no avião. Todos faziam questão de enfatizar as coisas que tinham para que todo mundo ouvisse”. É Brasil, minha gente! É branquitude! Essa gente se apoia no dinheiro para afirmar-se enquanto gente, visto que na Europa, são brancos menos brancos. Aí eu fico pensando que eu tenho que conviver com isso somente nas filas de embarque, mas o meu povo preto todo dia enfrenta situações como estas. Que cansaço!

A classe média brasileira não é um bloco homogêneo. Sabemos disso. Existem extratos dentro delas, as mais baixas, as mais altas, dada pelo salário e poder de consumo. Esta parcela que observamos no aeroporto tem um certo capital econômico para viajar e consumir e tenta se afirmar a partir dele. Mas não tem capital cultural. Se tentarmos conversar sobre literatura brasileira com esta gente, não teremos êxito. Há tanta agressividade que, acostumados com porteiros, empregadas, babás, têm dificuldade em se ver em relações horizontais. Até fora do Brasil, buscam a distinção, como se todo o mundo pudesse ter os mesmos códigos que os nossos para os distingui-los na fila do pão. Aliás, é humilhante demais para eles e elas estar na fila. Homens falam tão alto para serem ouvidos, mulheres dão show de agressividade, tentando afirmar superioridade. Daqui há uns meses, terei que passar de novo pelo aeroporto de Lisboa, rumo a Fortaleza. Que eu esteja com a saúde mental em dia e muita lucidez para olhar gente branca com a distância necessária. E, para pessoas negras e das classes populares que passam por Lisboa, coloquem-se num ângulo e observem. O espetáculo é bizarro!


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, escritora, autora do livro Cartas a um homem negro que ame, Editora Malê.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

-+=
Sair da versão mobile