Promover o protagonismo de crianças negras na literatura infantil é um dos pontos centrais das obras de Kiusam de Oliveira. A escritora, que é também doutora em Educação e professora com décadas de experiência no ambiente escolar, transita com propriedade entre as realidades pedagógica e literária para criar, de modo didático e lúdico, obras que promovam a autoestima e o papel central de crianças negras no cotidiano.
A mesma lógica vale para o trabalho voltado à sensibilização de crianças brancas sobre a equidade racial. Alguns destaques vão para obras como Omo-Oba: Histórias de Princesas, O Black Power de Akin, Com qual Penteado Eu Vou? e Tayó em Quadrinhos.
Kiusam de Oliveira é a entrevistada de abril da Fundação Tide Setubal, em lembrança do Dia Nacional do Livro Infantil, data lembrada em 18 de abril. Durante o diálogo, a escritora falou sobre temas diversos, como o papel da literatura infantil na educação antirracista e questões que vêm antes desse tópico, que dizem respeito à reprodução – e ao combate – do racismo no tecido social. Ainda, Kiusam falou também sobre a Lei 10.639, que completa 20 anos em 2023 – lei cuja implementação ela assessorou em Diadema, município de São Paulo, inclusive por meio da formação de profissionais.
Confira a entrevista a seguir.
Ler para crianças estimula o hábito da leitura e fomenta a criatividade. É possível considerar que livros infantis voltados à representatividade negra têm também influência na autoestima e autoimagem de crianças negras?
Com certeza. Gosto de pensar em unir o útil ao agradável e a leitura mediada é muito importante. A criança perceber o valor do livro, com uma história bem contada e relacionada com a vivência e a experiência dela, é algo fantástico para mim. Ela poderá relacionar questões vividas por ela, com uma determinada narrativa, e se identificar com a história em questão. Além disso, ela poderá ampliar o universo e repertório de práticas, ações e respostas para situações pelas quais esteja passando.
Considero esse tipo de leitura como algo extremamente importante quanto à educação para relações étnico-raciais e de gênero, que são os temas com os quais trabalho, pois as crianças se deparam com episódios de discriminação desde muito cedo no espaço escolar. Ampliar repertórios torna-se algo fundamental e o com o livro, por ter ter algo associado ao lúdico, a criança pode aprender algo muito importante para ela ao ter acesso a esse instrumento. Mesmo com o livro sendo colorido e tendo ilustrações incríveis, o texto traz uma mensagem que chegará até ela de forma suave, de forma lúdica, ilustrada e alegre. A mensagem vai diretamente para o coração e para o cérebro da criança, onde ela começa a articular.
É extremamente importante atrelar a ludicidade vinda de um livro de literatura infantil com assuntos extremamente reais, narrados de forma delicada, acolhedora e amorosa. A história foca em fortalecer as identidades das crianças negras, para o que ela vivenciará ou está vivenciando quanto à discriminação por meio da cor da pele, tipo de cabelo, lábios, enfim.
Quais são os reflexos no desenvolvimento intelectual e social do acesso a obras que abordam questões étnico-raciais e diversidade de gênero?
As pessoas entendem que somente escrevo para crianças negras, mas na verdade é para crianças. Tenho foco nas crianças negras, pois sei do buraco existente na literatura infantil pensada para elas – autoras/es de literatura infantil não pensam em termos de ilustração e conteúdo. Trazemos essa questão para embate, conversa e discussão, ampliando a qualidade discursiva em relação à diversidade. A partir de um olhar e vivência próprios, sabemos que se trata de experiências pelas quais nossos corpos passam no cotidiano brasileiro, como o encontro ou o confronto com as práticas racistas no cotidiano.
Fui uma criança negra e sou uma professora negra que acompanha há 35 anos a educação infantil. Sei como a questão racial é chave nas relações entre as crianças: elas reproduzem preconceitos de pais, mães, avós e avós no espaço escolar. É uma felicidade chegar em uma escola e encontrar crianças não negras dizendo que amam o livro Omo-Oba: Histórias de Princesas, ou que são Oxum ou Iemanjá. Com o fato de crianças negras acharem que princesas e príncipes brancas/os de livros infantis são bonitas/os e desejarem ser elas/es, o meu sonho foi sempre ver crianças brancas desejando ser príncipes e princesas africanas/os. Tenho visto acontecer a partir do Omo-Oba.
A contribuição para ampliar o repertório de crianças negras e não negras na literatura precisa ser pensada, reconhecida e valorizada. O mérito da minha literatura, para além da escrita, é o cuidado com a ilustração. As crianças negras precisam se ver bonitas, belas e encantadoras na literatura. As ilustrações devem ser a imagem delas e isso é fundamental. Acho que tenho contribuído para a ampliação de repertório das crianças não negras, assim como o desejo de elas também representarem personagens negros que tenho trazido na literatura.
Quais pontos você pode destacar nesse contexto?
É importante saber que quando uma criança discute o que viu no Jornal Nacional sobre o jovem que deu um pacote de palha de aço para a professora negra, deve-se discutir que aquilo é racismo – ou propor discussões. Isso é qualificar o universo infantil e elevar o nível das discussões, pois a criança é capaz de discutir sobre qualquer assunto. Nós, adultos e adultos, [somos] mediadores entre assuntos. A criança deve saber qual tipo de vocabulário usaremos para ela acessar determinadas informações.
Acredito na perspectiva de elevar a qualidade da discussão, trazendo assuntos que adultos consideram tabus, como em relação a gênero, a partir da literatura. Quanto à questão de gênero, há uma história dentro do livro Tayó em Quadrinhos, da Companhia das Letrinhas, que, aliás, ganhou um prêmio da Unesco ano passado: um quadrinho chamado Machismo. Tayó está Kayodê, amiguinho dela, e nessa história ela diz: “Kayodê, hoje ouvi um homem dizer que mulher negra deve pilotar somente o fogão” – ele responde que isso é preconceito. Ela diz que sabe disso e que quando for adulta, pilotará o que quiser, igual à mãe.
A criança precisa poder qualificar o que é ouvido, dito, repetido e vivenciado por ela. Para mim, a literatura é uma oportunidade para ela qualificar discussões que não conseguimos fazer no cotidiano. Nem percebemos comportamentos tão ruins que temos ao lado delas, pois isso se tornou um vício – repetimos formas de falar e de se portar, e não conseguimos ver que a criança está em processo de construção e observa os nossos comportamentos. É o momento de podermos, a partir da literatura, de uma brincadeira ou de uma música, tratar de assuntos importantes para o desenvolvimento integral delas enquanto cidadãs.
Em 2018, houve um episódio de racismo religioso relacionado à obra Omo-Oba – Histórias de Princesas em uma escola no RJ com pais pedindo a exclusão da obra. Quais os caminhos possíveis em âmbito pedagógico para uma contranarrativa para o fundamento religioso?
Para mim, trata-se de ações casadas. Por exemplo, o Sesi conseguiu reverter essa situação e manter o livro, apesar da rebelião de alguns pais. Houve um momento de tentar substituí-lo para pais que não o haviam comprado ainda para, enfim, a indicação de um outro livro. No fim das contas, reverteram a situação e conseguiram mantê-lo. Profissionais da educação precisam entender que têm autonomia para o trabalho antirracista – está na Constituição Federal de 1988. Aliás, o Movimento Negro Unificado (MNU), do qual faço parte, ajudou na sua elaboração. Se há direitos de crianças, mulheres, negros e negras e indígenas, é por conta da presença de negros nesse processo. Há a CF88, a LDB e seus artigos 26A e 79B, que obrigam o ensino sobre história e cultura afro-brasileira e indígena, e a Lei 10.639/03.
Há o ECA, segundo o qual educadoras/es são responsáveis pela proteção integral de crianças e jovens no espaço escolar. Se somos responsáveis, falamos de qualquer assunto que atinja os corpos delas, inclusive racial e de gêneros. Há o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei Caó e um aparato de leis, diretrizes curriculares nacionais para educação das relações étnico-raciais – não estamos criando roda nenhuma e estamos dentro da lei. Profissionais da educação devem se dar conta disso. Oriento minhas alunas do curso de pedagogia a fazerem como eu sempre fiz: andar com uma pastinha com a cópia de todos esses documentos – fora os documentos dos quais o Brasil é signatário em relação a outros países, juntamente à Unesco e à ONU.
A Lei 10.639 completou 20 anos e ainda há resistência por parte de gestores nas escolas. Qual papel a literatura infantil com temática étnico-racial tem na aplicação da lei no ambiente escolar?
Antes de falar sobre a literatura negra ter efeito nas práticas desses profissionais, na perspectiva antirracista, é necessário considerar uma questão anterior. Primeiro, educadoras/es, pais e mães devem olhar nas estantes de suas casas e das escolas onde trabalham e os filhos estudam, e perceber se há livros com essa temática ou não. Posicionar-se politicamente pensando na bibliodiversidade é fundamental, pois não importa haver um livro com personagens negras/os se mediadoras/es não sabem o que fazer com ele ou não o usam. Se estamos no Brasil de maioria negra, o que justifica haver estantes e mais estantes de uma biblioteca com número gigantesco de livros com capas com personagens brancos, sendo que a mesma coisa não acontece com personagens negros ou indígenas? É estarmos em um país racista, que não dá visibilidade para o grupo que compõe a sua maioria, muito menos no campo da literatura.
Estive ontem [3 de abril] na Secretaria da Educação de Diadema para uma reunião – estou montando um espetáculo com dois bailarinos, Enoque Santos e Rose Maria de Souza. A secretária de Educação nos recebeu e disse que os meus livros foram comprados e distribuídos em todas as escolas da rede – em um projeto dentro da questão antirracista. Fiquei feliz, pois implementei a Lei 10.639 em Diadema, e continuam com a ação. Sei que profissionais da educação pegarão um livro meu ou de outra/o autora ou autor negra/o e saberão o que olhar para trabalhar pontos fundamentais na política antirracista. O incrível é o profissional ser sensível e entender ao usar, por exemplo, um livro com personagens negros para ser referência e mostrar aos alunos negros. Ele fará um papel consciente e politizado ao usar um livro pensando no universo dos estudantes daquela escola.
Quando professoras/es de escolas particulares me falam que não desenvolvem essa temática por não haver estudantes negras/os lá, digo que o problema é, ao estar no Brasil, haver uma escola com 1,5 mil, 2 mil alunos, sem estudantes negras/os. É necessário também trabalhar a perspectiva racista na formação de proprietárias/os e profissionais da escola. De nada adianta os livros negros ou indígenas chegarem para, como o meu amigo Daniel Munduruku já me contou, ele chegar em uma escola e, aí, as crianças dizerem que a professora havia falado sobre todos os índios serem preguiçosos. Professoras/es transmitirem estereótipos é algo ainda recorrente, assim como elas/es manifestarem que descendemos de escravos, sem sequer conhecer a nomenclatura de escravizadas/os. Se essa é a ideia, ela/e não consegue entender que a África é o berço da humanidade. Algo precisa anteceder isso: trata-se dos processos de formação continuada, que precisam acontecer, no caso, pensando em profissionais da educação. Caso contrário, não irão saber que as ferramentas estão lá: no caso, os livros com personagens negros, histórias focadas nesses mesmos temas.