A culpa não é da chuva: é do racismo ambiental

Política urbana é responsável por pessoas negras e periféricas estarem em risco

FONTEFolha de São Paulo, por Mariana Belmont
Área destruída por deslizamento em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo - Divulgação/Defesa Civil SP

Ninguém aguenta mais.

Há um ano escrevemos aqui nesta mesma coluna que “Não é falta de visão de futuro do povo: é racismo ambiental“. De novo, vários textos como esse serão escritos e registrados na memória de quem perdeu tudo. Segue perdendo. E quem causa isso?

Se os pesquisadores do clima alertam que as tempestades de verão já são esperadas, por que enchentes, deslizamentos de terra e transbordamentos de rios ocorrem mais nas áreas mais pobres do que nas mais ricas?

Se os pesquisadores alertam que é perigoso construir mansões em topos de morros ou na beira do mar, por que o poder público segue disponibilizando licenças que violam o bom senso e a lógica, diante do que está acontecendo no planeta?

As chuvas de verão não têm culpa: a responsabilidade é do poder público negacionista, dos interesses privados, da especulação imobiliária e do poder de barganha das grandes fortunas, é do descaso para com os mais pobres, do racismo, da desigualdade social e de um “desenvolvimento” que mata.

Uma coisa é certa: se trata de uma escolha do poder público.

Enquanto escrevo, centenas de pessoas estão ilhadas, algumas desaparecidas, outras sem comida, água e luz, outras perderam absolutamente tudo e algumas morreram, dentro de suas casas —locais que deveriam ser seguros. As imagens que vejo são do litoral norte e sul do estado de São Paulo, que recebe neste Carnaval milhares de turistas. Recebo também áudios de caciques da Aldeia Renascer, em Ubatuba, e da Aldeia Rio Silveiras, na divisa entre Bertioga e São Sebastião, com pedido de ajuda para alimentos. Rapidamente, uma rede de apoio com pedidos de ajuda, doações nas cidades começa a circular em grupos e nas redes sociais.

Em matéria da Folha, com dados da Defesa Civil do estado de São Paulo, 44 mortes já foram confirmadas. Há também 1.730 pessoas desalojadas e 766 desabrigadas. Há ao menos 40 desaparecidos. Entre os mortos há uma criança de 7 anos, que morreu em um deslizamento de terra em Ubatuba. Os outros 43 mortos são de São Sebastião, a cidade mais afetada pelo temporal —31 óbitos na Barra do Sahy, 2 em Juquehy, 1 em Camburi, e 1 em Boiçucanga. Houve também um alagamento na Comunidade Ponta da Praia, no Rio Pequeno, região do Butantã, e várias famílias perderam tudo. Famílias pobres.

Você já deve ter ouvido falar que isso acontece porque nas áreas mais pobres há muitos morros, muitas ladeiras, ou porque muitas ficam na beira dos rios. Mas, para início de conversa, é fundamental entender que habitação em áreas íngremes não é sinônimo de desastre. Como falamos no artigo de um ano atrás, basta olhar para a região de Perdizes, em São Paulo, bairro de classe média alta onde os edifícios não deslizam a cada tempestade —graças aos investimentos em infraestrutura feitos pela Prefeitura.

A carência de infraestrutura urbana para a permanência segura de moradias em áreas de morro nas regiões mais pobres é um produto do sistema que transforma a necessidade humana básica de morar em mercadoria. Essas situações de risco não surgem de uma suposta falta de planejamento individual e familiar. Não são fruto de escolhas da população que reside em assentamentos precários, e sim da política habitacional —ou falta dela— destinada à população negra e periférica.

É a política urbana a responsável pelas pessoas negras e periféricas estarem em condições de subalternidade e de risco socioambiental: as regiões mais seguras não foram feitas para elas as habitarem e, nos bairros onde habitam, não há provisão de infraestrutura nem ações e programas de adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Como agir quando o direito à terra continua sendo limitado por um grupelho de proprietários, e a única alternativa da população de baixa renda é se sujeitar aos subprodutos do mercado? Culpar as chuvas e as famílias não é o caminho. Os municípios precisam ser responsabilizados pela falta de ações de adaptação e pelas mortes e soterramentos.

Ainda que as tempestades possam de fato se intensificar no contexto de emergência climática que vivemos, o ponto central aqui são os processos históricos de formação territorial, nos quais o racismo é elemento estrutural. É disso que se trata quando falamos de racismo ambiental.

O termo “justiça climática” é europeu e branco demais para retratar o que vivemos na América Latina. Escrevi sobre isso várias vezes em minha coluna no UOL. Racismo ambiental é o que de fato acontece nas cidades: qual a cor das pessoas mais impactadas pelas chuvas?

Voltamos a pontuar que, neste ano, a primeira vítima de deslizamento de terra foi um jovem negro de 19 anos, motoboy, em Olinda (Pernambuco). Mais uma morte que poderia ter sido evitada pela ação do poder público.

Em outubro do ano passado, a relatora da ONU Tendayi Achiume reforçou em seu relatório que não pode haver mitigação ou resolução significativa da crise ecológica global sem uma ação específica para lidar com o racismo sistêmico, em particular com os legados raciais históricos e contemporâneos do colonialismo e da escravidão.

Temos a responsabilidade de cumprir a meta de desmatamento zero em todos os biomas nacionais, mas temos também a responsabilidade de tornar efetivo o Plano Nacional de Adaptação e eliminar as desigualdades raciais, étnicas, de gênero e geracionais, assegurando a implementação de políticas nacionais de gestão ambiental, gestão territorial, fortalecimento da agricultura familiar e da titulação de terras quilombolas.

O uso por autoridades de palavras como “extremo” e “natureza” como justificativa para os desabamentos não passa de uma tentativa de explicar sua injustificável naturalização da morte. As chuvas de verão já são esperadas. As notícias de famílias perdendo tudo, desde as suas casas até suas vidas, também são. A culpa não é da chuva. A sociedade civil, governo federal e os governos estaduais e municipais não podem mais agir só no dia da desgraça, depois de vidas perdidas.

Todo ano é a mesma coisa, e solidariedade não basta para quem perde pessoas, memórias e suas casas, construídas com o suor de muito trabalho. A população espera que o poder público faça algo, e não mais apenas a política do deixar morrer.

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