A ‘desfavelização’ e o ódio da elite às periferias perpetuam herança colonial

Prefeitura de Duque de Caxias reproduz lógica colonialista que marginaliza moradores de favela

FONTEPerifaConnection, por Vitor Lourenço e Dani Lopes
Perifa Connection/Divulgação

“Moro na Favela do Lixão há mais de 30 anos. Quando cheguei, a capineira tinha só quatro casas. Aqui tive e criei três filhos sozinha, construí minha casa com muita luta e suor, perdi meus pais, uma filha que me deixou um neto autista para criar, e uma irmã. Tudo que sei e que fiz da vida, foi daqui.”

É assim que a líder comunitária Rocicler Thomaz Fortes, mais conhecida como Dona Rose, começa a falar de suas lembranças na favela Parque Vila Nova, popularmente conhecida como Favela do Lixão.

Localizada no centro da cidade de Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, o território tem se consolidado como um polo da luta por moradia na cidade.

Não por coincidência, é hoje palco de um dos maiores experimentos referentes à política de habitação no país. “O Maior Projeto de ‘desfavelização’ do Brasil” é como o governo de Caxias anuncia o programa que está removendo mais de 4 mil famílias de suas casas, tendo como justificativa a reurbanização da área.

Favela de Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, e prédios vizinhos luxuosos à direita escancaram desigualdade em SP – Inês Bonduki-03.mar.21/Uol

A ação, que conta também com incentivo federal e estadual, reproduz conceitos ultrapassados que perpetuam a estagnação de um plano político elitista, classista e racista, que nos remete à reforma urbana na cidade do Rio de Janeiro no início do século passado, conhecida como “Bota-Abaixo”.

Ela expulsou a população vulnerabilizada de suas habitações, os cortiços, através de ações higienistas, iniciando o processo de favelização dos morros próximos ao centro da cidade.

Precisamos lembrar que as políticas nacionais de habitação e desenvolvimento urbano sofreram, como tantas outras, um profundo vácuo de investimento, especialmente nos últimos quatro anos.

Essa fragilidade federal que se estendeu ao campo político gerou desdobramentos e alargamento das desigualdades nos estados e municípios de todo o país.

O déficit habitacional no Brasil —que é a falta de moradia ou a existência de habitações em condições precárias— é de 5,8 milhões de domicílios, de acordo com levantamento de 2019 da Fundação João Pinheiro.

No Rio de Janeiro, esse déficit é de 476 mil casas, sendo 331 mil destas na Região Metropolitana. Um problema social dessa magnitude e urgência não se resolverá a curto prazo e nem com modelos obsoletos de intervenção.

A aversão aos espaços periféricos e o fim das favelas é um sentimento antigo dos detentores do poder econômico e político do Brasil.

Não estamos falando de ações para o fim da pobreza ou da violência nessas localidades, mas da destruição dos próprios territórios enquanto comunidades, já que, sob pilares de resistência, neles têm surgido um levante de organização e força política com os quais a hegemonia não quer se arriscar a lidar.

Moradores do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), onde funcionou o maior lixão da América Latina, assistem o jogo da Copa do mundo entre Brasil e Croácia, que resultou na eliminação da Seleção Brasileira – Tércio Teixeira-09.dez.22/Folhapress

A proposta de “desfavelização” é uma ameaça concreta em vigor contra a existência e a história das favelas de todo o país, afetando profundamente a vida de milhões de brasileiros, cultural, social e economicamente.

Destruir o que existe para construir algo novo sob os parâmetros da elite perpetua um retrato colonialista que assistimos como a uma série com inúmeras temporadas parecidas. Não há sentido em despejar pessoas de suas casas para construir outras no lugar.

Posturas verticais e autoritárias na condução das políticas afetam a relação do Estado com 17,9 milhões de pessoas que vivem em favelas em todo o Brasil, conforme pesquisa Data Favela 2023.

Desconsiderar a participação dessas pessoas nos processos de construção social que as envolvem é fadar os mesmos ao fracasso desperdiçando dinheiro público, como tem acontecido há décadas no Brasil.

Professor do departamento de serviço social da PUC-Rio, Rafael Soares Gonçalves, que debate acerca de casos como este, critica a ação da prefeitura de Duque de Caxias.

“Parece que voltamos à década de 1960. Esse tipo de intervenção é política pública para quem? Esse tipo de projeto precisa considerar o estatuto das cidades e a participação popular”, afirma.

De acordo com a pesquisa Data Favela, o potencial de consumo das favelas no Brasil é de quase R$ 10 bilhões por ano. Ainda segundo o levantamento, cerca de 50% dos favelados empreendem em suas localidades e cidades.

Esperamos que o Estado compreenda as favelas a partir dessa potencialidade de desenvolvimento cultural, social e econômico, e da incidência disso nas cidades e estados.

No dia 13 de julho, o governo federal lançou o novo Minha Casa, Minha Vida, colocando como prioritário o papel e a participação das periferias para o desenvolvimento do Brasil.

No entanto, considerar esses espaços importantes para o país vai na contramão de projetos higienistas como o da “desfavelização”.

O programa Minha Casa, Minha Vida do atual governo tem capacidade para zerar o déficit habitacional no Brasil de forma linear, coerente e sem despejos, valorizando as favelas.

Uma relação horizontal, ampla e transversal do poder público com as favelas que fortaleça a construção de instrumentos de vida onde rotineiramente se impõe a violência e o apagamento é um caminho consistente para a superação das desigualdades estruturais desse país.

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