A eleição de deputadas negras em Portugal e as cicatrizes coloniais

Joacine Katar Moreira comemora a sua entrada no Parlamento, pelo Livre. © Sara Matos / Global Imagens

O ódio à Joacine Katar Moreira e o pensamento colonialista português

Por Bruno Falci, do Jornalistas Livres

Joacine Katar Moreira comemora a sua entrada no Parlamento, pelo Livre. (Foto: Sara Matos / Global Imagens)

O país socialista que víamos como uma espécie de respiro da Europa, em relação ao crescimento da extrema direita, está sofrendo uma tensão entre as três deputadas negras que foram eleitas – sendo uma delas “cabeça de lista” do partido Livre, Joacine Katar Moreira – e o primeiro representante da extrema direita a ser eleito em Portugal (não reproduzo aqui o seu nome porque já vimos como a publicidade e exploração midiática pode contribuir para a volta e consolidação de ideias fascistas).

Joacine está sofrendo ataques de ódio. Após tantos e tantas terem menosprezado suas convicções e sua capacidade, ao mencionarem como fator preponderante a sua gagueira, ela agora está sendo acusada de não priorizar o país que a naturalizou, Portugal, onde vive desde os 8 anos de idade, pelo fato de não ter se oposto a erguer uma bandeira da Guiné-Bissau, seu país de nascimento (o que fez também com a de Portugal e a da União Europeia). Este foi o ponto de partida tomado como base para uma petição que objetiva o impedimento de sua tomada de posse.

Assistimos incrédulos a estas manifestações e um tanto confusos, afinal não estávamos num “oásis de acolhimento”? “terra pacífica e generosa”, este nosso “país irmão”?

Apesar de Portugal ter sido o inventor do chamado tráfico negreiro e responsável pela morte, tortura e escravização de seres humanos por quase quatro séculos (oficialmente vetado da atividade no final do século XIX), sempre escolheu apostar no marketing da benevolência dando o nome de Descobrimentos às Invasões, que deram início ao perverso processo de anulação e proibição de toda a cultura que não fosse branca europeia, chamado colonização. E assim prosseguiu difundindo a ideia de países irmãos e camuflando o seu racismo e xenofobia aos brasileiros, africanos, ciganos e portugueses com estas origens.

Como o Brasil, que custa a reconhecer seu racismo, por aqui negam que a causa de tanta rejeição seja a cor e origem de Joacine. Os motivos são tão frágeis que fica nos rondando a pergunta: Por que, então, afinal, tanto ataque à primeira deputada negra a encabeçar uma chapa?

Esta pergunta me fez refletir sobre os pilares desta reação e me vem à cabeça dois vídeos bastante representativos do pensamento colonial português, um vídeo antigo de um dos maiores humoristas portugueses, Ricardo Araújo Pereira, e um bem recente, uma reportagem especial da Sic tv.

No primeiro vídeo, de Ricardo Araújo Pereira (que acredito e espero não ter chance de ser reproduzido por ele nos tempos atuais), o humorista reforça esteriótipos negativos como referir um bairro de maioria pobre e negra como bairro de bandidos e pessoas perigosas e o faz utilizando o recurso da black face, que nasce justamente com este fim, de ridicularizar e incutir periculosidade nos negros com o fim de entreter uma plateia de brancos.

O segundo, já distante do ambiente do riso, podemos ver uma reportagem de uma grande rede de televisão portuguesa tratando de um tema extremamente grave, que foi a tragédia ambiental sofrida este ano por Moçambique (também sua ex-colônia) e, enquanto o faz, tem o cuidado de preservar e alimentar também esteriótipos racistas. Em poucas palavras, as escolhas da reportagem traçam uma narrativa clara de manutenção da nostalgia colonial, onde os corpos nus das mulheres negras preparam o nascimento dos bebês feitos por uma parteira portuguesa. A repórter pergunta (e muitas vezes responde pelos entrevistados) sobre os detalhes da miséria em que viviam antes da tragédia, ressalta as diferenças marcando o alto nível de natalidade mesmo em situação de calamidade, não fala com médicos ou autoridades locais, com exceção do responsável por gerir as doações feitas por países europeus, a quem questiona o destino das ajudas. E, com grande apelo imagético, mostra mulheres brancas a colocarem tijolos na construção de casas subsidiadas por elas, representando a emissora (com a ressalva de que o material para os tijolos é recolhido no local e a obra feita pelos próprios moradores como forma de incluir a comunidade). Ainda há uma parte onde um padre católico reza uma missa nos escombros de uma igreja.

Como é que continuamos corroborando sem questionamento com essas narrativas que revelam um país cujo racismo estrutural reforça os feitos heróicos da época áurea nacional sem sequer pensar em fazer um museu da escravatura? É motivo de graça falarmos de um bairro cuja maioria das pessoas, por um processo histórico iniciado por Portugal, tem em comum serem negras e pobres, trabalhadores como nas nossas favelas, é engraçado dizer que são todos bandidos? Não se percebe que é essa a mesma premissa que permite atos de violência nestes locais sem comoção social? Não é perceptível o porquê de tanto ódio à Joacine?

Opinião por Caeli da Silva Gobbato*

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