A escola de sua cidade aplica a Lei 10.639/03, uma consequência da luta negra?

FONTEFolha de São Paulo, por Djamila Ribeiro
Djamila Ribeiro, mestre em filosofia política, ativista feminista e secretária-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo. (Foto: RICARDO MATSUKAWA)

Muitas pessoas têm me perguntado recentemente o que elas podem fazer em prol da equidade racial no país. Quando Angela Davis afirmou que não basta não ser racista, mas é necessário ser antirracista, fez um chamado à ação, à transcendência do mero repúdio moral à discriminação.

Por ação, precisamos entender que há uma estrutura posta que intermedeia todas as relações sociais e uma semana de mobilização pela internet não será suficiente para transformá-la.

Então, perguntam: qual seria uma ação antirracista possível na minha realidade? O que posso fazer?

Linoca Souza/Folhapress

Bom, há muito o que ser feito, mas neste texto gostaria de destacar o que é um elemento central na formação e constante atualização do sistema racista: a educação. A luta de movimentos negros pela transformação no sistema educacional remonta às fundações deste país. Desde a Constituição do Império, que proibia as pessoas negras e indígenas de estudar, até a luta pelas cotas raciais nas universidades, a população negra lutou bravamente. É de conhecimento geral, inclusive da branquitude que se finge de avestruz, que a transformação na educação resulta numa transformação da sociedade.

Em 2003, uma dessas grandes batalhas resultou na Lei 10.639, que alterou as diretrizes básicas da educação para inclusão do “estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil”.

A professora emérita Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva da Universidade Federal de São Carlos integrou a comissão que elaborou o parecer do Conselho Nacional de Educação para as diretrizes curriculares da proposta.

Em “Uma Trajetória até a 10.639/2003”, publicado no décimo ano de vigência da lei, a professora Azoilda Loretto da Trindade, grande educadora brasileira, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se juntou aos ancestrais há poucos anos, afirma a enorme importância dessa lei para a população negra.

“A lei 10.639/2003 é consequência da luta histórica do movimento negro por justiça e equidade, contra o racismo e as desigualdades étnico-raciais. É um indicador da persistência e permanência da injustiça e da busca por equidade. Ancora-se, no caso da educação, num longo processo de exclusão da população negra do direito à educação.”

“A invisibilidade é a morte em vida”, Trindade afirmava, e contra esse apagamento histórico, epistemológico e existencial lutou intensamente. Dedicou toda uma vida para que pessoas como eu tivessem oportunidades de conhecer sua história e seus antepassados nas salas de aula, deixando um legado imenso na educação antirracista, como o projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira “A Cor da Cultura”, o qual coordenou em parceria com o canal Futura, e está disponível online.

Ao longo de sua pesquisa, Trindade explorou a importância da valorização da história da população negra no país. Em “Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros na Educação Infantil”, afirma: “A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil valores civilizatórios, ou seja, princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem num processo histórico, social e cultural. E apesar do racismo, das injustiças e desigualdades sociais, essa população afrodescendente sempre afirmou a vida e, consequentemente, constitui o(s) modo(s) de sermos brasileiros e brasileiras”.

Nesse mesmo texto, em belíssima passagem, a educadora sintetiza a indignação que deve canalizar na transformação do ambiente escolar para crianças e jovens negros: “É impressionante que, por muito tempo, ninguém se preocupou com a importância de colocar, no acervo de brinquedos das crianças da educação infantil, bonecas e bonecos negros, livros infantis com imagens e personagens negros em posição de destaque, não ter mural com personagens negros, não serem trabalhadas as lendas, as histórias e a história africanas, entre outras formas de afirmação de existência e de valorização dos negros em nosso país”.

Como se vê, o cumprimento da Lei 10.639 e a valorização da educação antirracista é uma medida de urgência histórica, constante e que deve ser feita por toda a sociedade civil: de diretoras aos pais, de secretarias municipais e estaduais aos órgãos de Justiça, entre tantas pessoas e instituições que devem se preocupar com a promoção do ensino histórico e político da luta da população negra brasileira, que segue resistindo neste país.

Honremos a memória de Azoilda Trindade e de tantos educadores que dedicam suas vidas às práticas antirracistas e continuemos a história de transformação da sociedade. Honremos Petronilha, Azoilda e educadores comprometidos com a educação antirracista.

Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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