A ferocidade da aversão ao outro

Fonte: Estadão. Com
Por Gilles Lapouge*

 

 

Neste ensaio, o tecido social esgarçado pela xenofobia e pelo racismo, numa Europa que se pretende unida

A Europa é uma bela ideia, uma ideia muito agradável. Pois não é que aboliu, entre os 27 países que a compõem, as fronteiras que separam homens, produtos ou moedas? Se eu quiser ir a Praga, pego alguns euros e o trem. E chego lá.

 

No entanto, as fronteiras subsistem. Não no interior da Europa, mas em torno dela. Um cinturão de alfândegas, postos de observação, milicianos e militares rodeia o “continente sem fronteiras”. Esse cinturão às vezes é terrestre. Por exemplo, a leste, especialmente entre a Grécia e a Romênia (países da União Europeia) e a Turquia (que não pertence à União Europeia e ainda tem a indelicadeza de ser muçulmana). Outras vezes os postos de guarda estão nas costas, de preferência nas ilhas, como em Lampedusa (Itália) ou nas Canárias (Espanha).

 

São nesses lugares que se encontram as barreiras virtuaismais agressivas que protegem o doce sono dos doces europeus contra os andarilhos e esfarrapados que afluem à fortaleza europeia. Os vigias estão de guarda. Pertencem a uma agência criada há quatro anos chamada Frontex (quase “fronteira”), um pouco como as legiões de Roma que, acampadas nas linhas de fortificação, vigiavam os movimentos dos hunos e ostrogodos. A Frontex, gerida por funcionários vindos de todos os Estados da União Europeia, não brinca com os imigrantes.

 

E esses imigrantes são mesmo ardilosos. Não se pode confiar neles. Entre a Turquia e a Grécia ou a Romênia, eles se escondem nos enormes caminhões articulados que garantem o tráfego comercial europeu. Os membros da Frontex dispõem de um aparelho estupendo – um pouco caro, mas quem o possui são os países ricos da Europa, como a Finlândia. Esse aparelho é simples e indolor. Ele detecta batimentos cardíacos. É composto de dois sensores magnéticos fixados no chassis dos caminhões, ligados a um computador portátil.

 

Surpreendente: como é que um clandestino pode fazer o seu coração deixar de bater para entrar na Europa? Ou, se o seu coração para, será um morto a penetrar no “local sagrado”. Mas o fato é que esse clandestino tem medo e o seu coração bate muito forte, faz muito barulho. Devemos considerar esse aparelho um símbolo, quase uma figura mitológica, dessa Europa que adotou tal sistema para se proteger? Atingir o intruso no seu coração, um coração que palpita sem cessar, sob a lona dos caminhões ? Enfim, é uma variante do detector de respiração humana, que utiliza sensores de dióxido de carbono.

 

De outro lado, a entrada pelo mar, pelas ilhas do Mediterrâneo ou do Atlântico Leste, também está bem guardada. As TVs do mundo inteiro nos mostraram imagens repugnantes, mostrando barcos vindos da África negra (pelas Canárias) ou da Líbia (por Lampedusa), cheios de corpos, alguns vivos outros mortos, de velhos, mulheres, crianças.

 

“Com frequência as autoridades rechaçam os imigrantes e os deixam enfrentar as dificuldades, se não a morte, como se fossem barcos cheios de lixo perigoso”, diz indignado o Alto Comissário de Direitos Humanos das Nações Unidas. A Itália se distingue. Enquanto a Espanha procura tratar esse “lixo” da África negra com um mínimo de humanidade, Berlusconi, como se fosse um zelador dos bons costumes, não suporta essas pessoas sujas e, além do mais, moribundas.

 

A repressão é feroz. É verdade que a Itália, pela sua geografia, na frente da Líbia, está na primeira linha. O país recebeu em um ano 37 mil clandestinos e quatro mil morreram no mar. Para aqueles que conseguem chegar às suas costas, os italianos endureceram as penas (o que valeu ao país um violento incidente com os comissários europeus de Bruxelas). A partir de 8 de agosto, uma nova lei (a “lei da dor”, disseram os bispos) transformou a imigração clandestina em delito, passível de uma multa de 10 mil.

 

O ódio contra os estrangeiros não tem limites. Berlusconi apresentou o seu programa: no final de 2009 quer atingir a “imigração zero”. Os africanos que chegam, quase mortos, a Lampedusa, são abrigados em campos imundos. Berlusconi persegue os romenos, os ciganos e os remete à cólera pública, para depois devolvê-los em voos charter. Para onde? Para o país deles, claro. Mas onde fica esse país? Em lugar nenhum.

 

Depois de um período como missionário na África, padre Giorgio voltou à Itália como pároco em Castel Comboni, na Campânia, perto de Nápoles. É o “primeiro círculo de inferno da imigração na Itália”, compara o religioso, visto como “aquele que importa negros”. Seja um árabe, ou um negro, ou um moldávio, ou um ucraniano, ele atende a todos. Estrangeiro sem documento que vai à paróquia de Castel Comboni recebe uma autorização de permanência. Padre Giorgio sentencia: “Que me mandem para a prisão, pois não denunciamos estrangeiros”.

 

A Itália é um dos países mais ferozes, menos dignos, mas o movimento de imigrantes é geral, da Irlanda à Grécia, de Portugal à Grã-Bretanha. Em toda a parte observa-se o repúdio, a desconfiança. Segundo o antropólogo Michel Agier, “a Europa pós-Guerra Fria traça seus limites gerando a violência nas suas margens”. Na fronteira externa, essa violência aparece na forma de controles, coação, brutalidade física, reclusão. No seu interior, aparece na multiplicação de campos. Estima-se em 1 milhão o número de campos espalhados pelo mundo, que se tornaram residência temporária para milhões de seres humanos. A Europa possui 250 “centros de retenção” . São indecentes e hediondos. No momento da derrubada do Muro de Berlim, há 20 anos, 85% dos pedidos de asilo eram aceitos. Em 2009, é o contrário: 85% dos pedidos de asilo são recusados.

 

Esse endurecimento começou antes da crise financeira. Mas ela agravou as coisas. Fechou as fronteiras. A situação dos imigrantes ou dos sem-documento já presentes ficou mais dramática. O desemprego dobrou entre eles. A opinião pública, que nunca foi terna, endureceu, como forma de explicar suas próprias dificuldades pela presença desses “imigrantes tão traiçoeiros que aceitam salários lamentáveis para roubar nossos empregos”.

 

O mesmo processo é observado por toda a parte. Cada país tem, contudo, seu estilo, seu tipo de maldade. A Espanha rechaça os trabalhadores temporários que chegam para fazer a colheita de frutas. A Grã-Bretanha reduz as permissões de trabalho, a fim de proteger os ingleses. A Holanda impôs o teste da cultura e da língua holandesa. Num lugar público, por exemplo, o holandês é obrigatório. A Rússia, que tem 10 milhões de imigrados vindos das antigas repúblicas soviéticas, também coloca barricadas. A Irlanda, afundada pela crise financeira, já começou sua caça às bruxas. Malta transborda: essa pequena ilha, gloriosa na sua história, no centro do Mediterrâneo, possui apenas 400 mil habitantes. No ano passado recebeu 2.800 imigrados e colocou-os em campos tão repugnantes que os imigrantes tunisianos os incendiaram. Grécia e Chipre pedem, em vão, ajuda a Bruxelas.

 

A França de Sarkozy exibe um comportamento repugnante. Utiliza voos charter para levar os imigrantes de volta, sem considerar os perigos (econômicos ou mesmo políticos) que os aguardam no país de origem. O ministro da Integração se vangloriou de ter expulsado 30 mil clandestinos este ano. Para limitar o “reagrupamento familiar” (uma tolerância que permite a qualquer um vir à França se a sua família já estiver estabelecida no país), o ex-ministro Hortefeux, um pobre sujeito que passa o tempo ridicularizando os africanos, pensou em exigir testes de DNA para descobrir os impostores. Um projeto que provocou náuseas, tanto na esquerda, quanto na direita mais decente, na Igreja, até mesmo em Carla Bruni, a mulher de Sarkozy. O sucessor de Hortefeux, Eric Besson, que não é muito melhor, desistiu da medida.

 

Além dessas baixezas, Sarkozy vem se batendo pelo que chama de “imigração selecionada”. A França necessita de cérebros, pessoas inteligentes, instruídas, se possível limpas. Assim, um africano que saiu da Escola Politécnica, um argelino licenciado em Direito, essa Paris apresentada como humanitária adora. É uma tese traiçoeira. De um lado, rejeita nas trevas exteriores os mais desesperados; e do outro, priva a África do pequeno número de pessoas de alto nível, técnicos, diplomados, que esses países conseguiram formar com muito sacrifício. Um enorme egoísmo!

 

As crueldades da França são mais chocantes porque ela não está submetida a uma pressão tão forte. A migração espanhola e portuguesa na França já acabou há muito tempo. E os africanos pouco a pouco vêm perdendo a coragem de bater nessa porta. É verdade que os novos imigrantes veem do Leste – da Ucrânia, Romênia, do Sri Lanka, do Afeganistão, da Ásia.

 

É verdade que os imigrantes na França são muitos, mas muito menos do que na Alemanha, que tem 8 milhões, sobretudo turcos, e tudo corre bem. A França tem apenas 4 milhões de imigrantes e as coisas se passam muito mal. Paris nunca criou meios para integrar essas pessoas. Elas são isoladas em zonas com grandes aglomerações, onde o desemprego é duas vezes maior do que no resto do território. A França fez um esforço de escolarização, mas nesses guetos o desespero é o único produto verdadeiramente abundante. As crianças, em vez de ir à escola, vagam pelas ruas, brigam, provocam a polícia, que reage com brutalidade, traficam e desenvolvem um verdadeiro ódio contra o País dos Direitos Humanos.

 

De onde vêm esses imigrantes que representam hoje mais de 5% do total dos europeus (entre 25 e 30 milhões)? Há 20 anos, o fluxo migratório era na direção Sul-Norte, dos países em dificuldades para os países ricos. Essa direção continua, mas novas rotas se abriram do Leste para o Oeste. São pessoas que fogem da miséria da Europa Oriental – romenos, húngaros, ucranianos, bielo-russos, etc. No geral, mais tolerados que os africanos, salvo no caso dos romenos, odiados desde que deixaram há mil anos seu lugar de nascimento, o Rajastão, na Índia do Norte, porque vasculham o lixo, andam em farrapos e roubam galinhas.

 

Como explicar tanta hostilidade? Certamente na base existe um reflexo universal: o homem desconfia daquele que veio de fora. Na cidade de 20 mil habitantes onde nasci (Digne) todos detestam os moradores de uma outra (Manosque), que fica a 50 quilômetros. Os ingleses odeiam os franceses, e os moldávios detestam os húngaros.

 

E, com base nisso, proliferaram ideologias fascistas por toda a Europa, o partido de Jörg Haider na Áustria, os neonazistas flamencos, dinamarqueses, alemães orientais e, na França, o perverso partido da Frente Nacional de Le Pen. Xenófobos, antiárabes, mas sempre sendo contra os judeus, esses grupos não são numerosos, mas são hábeis e ativos. Colocam na cabeça oca do francês médio,do italiano medíocre, do holandês idiota, ideias degradantes, caricaturas de patriotismo. Plantam a semente apocalíptica: o ódio do outro. Desse ódio que, em primeiro lugar, é efeito do medo, eles conseguiram fazer uma verdadeira paixão, um prazer, um deleite.

 

Podemos perguntar se o ódio ao imigrante não faria o papel de cimento da coesão nacional. Em todos os países existem muitos antagonismos, estratos inimigos, rivalidades. Os parisienses desprezam os marselheses, que detestam os lioneses. Há antagonismos entre ricos e pobres, entre os que vivem na montanha e os que estão à beira do mar, os gordos e magros, os grandes e pequenos, a esquerda e a direita. Ora, o imigrante, o estrangeiro, tem essa virtude milagrosa de poder ser detestado por todos os franceses ao mesmo tempo. Deveríamos ser reconhecidos: graças a ele, a França forma um único povo.

 

(Felizmente, a rejeição do imigrante não é universal. Em todos os segmentos da sociedade, encontramos pessoas humanas, tolerantes, generosas. Entre os ricos, pobres, católicos, leigos, à esquerda e à direita, há os “justos”, que se mobilizam para socorrer os imigrantes quando são agredidos, seja pelo poder ou pelo ódio da rua).

 

A todos esses ingredientes, é preciso juntar curiosamente os anglo-saxões que atiçaram as brasas. Em primeiro lugar George W. Bush, a sua guerra do Iraque, seu discurso da “cruzada” e do “eixo do mal”. Depois, uma invasão de jornais e livros alucinados explicando que voltamos ao século 5º, quando a Europa cristã foi engolida pelas hordas mongóis, ou após o século 7º, quando os árabes bateram na porta da Europa, pela Espanha. É o caso do inglês Niall Ferguson, que escreveu : “Uma sociedade muçulmana jovem a leste e ao sul do Mediterrâneo está em vias de colonizar – e o termo não é muito forte – uma Europa cada vez mais senil”. E o americano Christopher Caldwell, que mostra “os muçulmanos prestes a conquistar as cidades europeias, rua após rua”.

 

Essas pobres filosofias são, infelizmente, apoiadas e justificadas pela lamentável epopeia do terror islâmico. Os atentados do 11 de setembro em Nova York, os massacres praticados pelos adeptos de Bin Laden são argumentos poderosos para os fascistas europeus. Como se através desses argumentos possamos odiar os imigrantes árabes o quanto quisermos.

 

É em torno do Islã que o ódio europeu dos imigrantes se cristaliza, em torno das mesquitas, dos imãs insanos que pregam a guerra santa. Por exemplo, o véu islâmico que a França, com sua tradição laica, não aceita e proíbe que seja usado pelas jovens islâmicas nos colégios. Para o escritor Joan Wallach Scott, “fizemos do véu um símbolo da diferença irredutível entre o Islã e a França”.

 

É exato. Mas há um outro sinal dessa diferença irredutível. É o debate que cerca a proposta de adesão da Turquia à Europa. Nicolas Sarkozy, contrariamente a outros dirigentes franceses de direita, recusa essa possibilidade. E multiplica seus argumentos contra a adesão – argumentos geográficos, históricos ou demográficos absurdos. O real argumento, que ele não ousa dizer, diz que a Turquia é muçulmana, enquanto que a Europa é cristã. Essa é a razão da recusa. Um “não” gigantesco e estrondoso, acatado por muitos políticos estrangeiros, mas que jamais foi apresentado por ser perigoso e sulfuroso.

 

Não estamos mais na época em que cavaleiros com suas couraças, brandindo ao vento a bandeira estampando o Coração de Jesus, partiam em guerra para retomar os lugares sagrados dos infiéis. Esse tempo já passou, mas sua lembrança retorna às vezes como um fóssil, a nos lembrar: nesse lugar viveu há muito tempo um animal, morto, bem morto, mas cuja lembrança permanece.

 

 

*Correspondente do Estado,dá palestra no auditório do Grupo Estado amanhã, às 14 horas, e no Centro Universitário Maria Antonia na quarta-feira, dia 23, às 18h30

 

Matéria original

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