A fragilidade dos direitos reprodutivos das mulheres

FONTEPor Emanuela Cardoso Onofre de Alencar¹, enviado para o Portal Geledés
Cris Faga - 5.dez.2017/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo.

Há pouco mais de um mês, celebramos a promulgação na Argentina da Ley de interrupción voluntaria del embarazo, que reconhece o direito de uma mulher de finalizar uma gravidez até a 14ª semana, de forma livre, segura e gratuita. Ali, o movimento ativo das mulheres e sua articulação política foram fundamentais para pressionar e conquistar o apoio de deputados e senadores no Parlamento. A aprovação dessa lei foi festejada, e não só na Argentina.

Passada a celebração, volta a cautela. No dia 22 de janeiro, foi publicada a decisão do Tribunal Constitucional da Polônia que considera inconstitucional o dispositivo de lei que permite terminar uma gravidez em casos de má formação fetal grave. Esta previsão normativa autorizou cerca de 97% dos 1.100 abortos praticados de forma legal em 2019, conforme dados oficiais. A partir de agora, as mulheres polacas só poderão interromper uma gravidez em casos de estupro, incesto ou quando houver um risco para suas vidas. Contudo, na prática, essa declaração de inconstitucionalidade representa a proibição do aborto legal, pois aceder a esse procedimento, mesmos nos casos permitidos por lei, é muito difícil.

Essa decisão, tomada no dia 22 de outubro de 2020, é o desfecho de uma ação de inconstitucionalidade apresentada em 2019 por deputados conservadores, cuja maioria pertence ao partido Lei e Ordem, que governa a Polônia. Defenderam ante o Tribunal Constitucional que a previsão legal era uma forma de legalizar na prática a eugenia.

A ação no Tribunal Constitucional foi a última investida de políticos ultraconservadores contra os direitos reprodutivos das mulheres polacas. Em outras ocasiões, já haviam tentado modificar a lei no Parlamento para limitar o aborto legal. Contudo, essas tentativas fracassaram ante as fortes manifestações e críticas da sociedade. Desta vez, o meio elegido logrou limitar o direito a interromper uma gravidez.

É importante destacar dois aspectos do contexto polaco que facilitaram esse retrocesso. Em primeiro lugar, alguns setores da sociedade polaca são profundamente católicos e contrários ao aborto. Em segundo lugar, o atual governo, que é ultraconservador e hostil a uma suposta “ideologia de gênero”, promove com frequência práticas iliberais que desafiam o estado de direito e debilitam as instituições democráticas. Desde 2015, uma série de medidas lhe permitiu exercer um maior controle sobre o Poder Judicial. Uma das mais significativas foi a reforma do Tribunal Constitucional e a posterior nomeação de juízes alineamos com o governo, o que gera sérias dúvidas sobre a independência e a legitimidade deste órgão.

A Polônia já possuía uma das legislações europeias mais restritivas em matéria de aborto², com procedimentos poco claros que dificultavam sua aplicação. Além disso, como é frequente em muitos Estados, na prática o acesso das mulheres às informações relevantes e ao aborto seguro nos casos permitidos por lei, estava cheio de obstáculos, como negar-se a realizar um aborto legal por questões de consciência sem encaminhar uma paciente a outro professional, negar-se a praticar esse procedimento de forma legal por pressão ou medo a incorrer em delito, dilatar a realização do aborto até cumprir o prazo legal e assim não poder praticá-lo, entre vários outros. Essas práticas discriminam as mulheres e vulneram seus direitos humanos à vida, à saúde e à dignidade.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos reconheceu em importantes casos – Tysiac vs. Polônia (2007), R.R. vs. Polônia (2011) e P. e S. vs. Polônia (2012) – que a legislação polaca sobre o aborto e sua aplicação são excessivamente restritivas e vulneram os estândares europeus de proteção de direitos humanos. Reconheceu também que certas práticas configuraram tratamento inumano e degradante.

A decisão do Tribunal Constitucional faz da Polônia o único Estado europeu que retrocede nos direitos reprodutivos das mulheres. A maioria dos Estados na Europa reconhece o direito de uma mulher a interromper com liberdade uma gravidez dentro de um certo prazo, e dois deles, Finlândia e Reino Unido, legalizaram o aborto por razoes sociais amplias. Polônia se situa agora ao lado de Andorra, San Marino e Malta, os únicos Estado que proíbem o aborto em qualquer circunstância.³

Proibir ou limitar o aborto não impede sua realização. Simplesmente empurra as mulheres que querem finalizar uma gravidez indesejada a realiza-lo de forma clandestina. E esse acesso clandestino expressa a existência de desigualdades entre essas mulheres. Aquelas que possuem mais recursos podem viajam a outros países para realizar um aborto legal e seguro ou podem pagar a professionais e/ou clinicas dispostas a realizar esse procedimento. As mulheres mais pobres se expõem a procedimentos inseguros. A clandestinidade do aborto gera sofrimento e põem em risco a saúde e a vida das mulheres.

A proibição do aborto em casos de má formação do feto representa uma vulneração grave de direitos humanos das mulheres e a quebra de compromissos internacionais assumidos por Polônia. Obrigar uma mulher a continuar uma gravidez contra sua vontade, em casos em que a vida do não nascido é inviável fora do útero, pode configurar uma forma de tortura ou de maltrato contrário ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.⁴

Por que o caso do aborto na Polônia deveria ser de interesse para os leitores e as leitoras brasileiras? Porque é um exemplo claro da fragilidade dos direitos reprodutivos das mulheres. Essa fragilidade se percebe especialmente em contextos onde há uma presença forte e muito ativa de forças políticas e grupos ultraconservadores que defendem uma agenda contraria à igualdade de gênero.

Com relação ao aborto, tanto em Estados europeus como da América Latina, como é o caso do Brasil, há muitos intentos, por exemplo, de limitar ou proibir o direito ao aborto, de implementar procedimentos que atrasam o acesso ao aborto legal ou provocam o sofrimento das mulheres, de dificultar o acesso a meios anticonceptivos, de impedir a educação sexual e o acesso às informações relevantes sobre direitos reprodutivos etc.

Os direitos das mulheres se conquistam, mas também se perdem. É fundamental estar vigilantes e atentos aos grupos ultraconservadores que atuam constantemente para limitar ou eliminar os direitos reprodutivos.

Notas de Rodapé:

2 Ver: Center for Reproductive Rights, “Europe Update: Abortion Rights at Risk in Poland and Slovakia”. Disponível em: https://reproductiverights.org/story/europe-update-abortion-rights-risk-poland-and-
slovakia. Acesso em 31.01.2021.

3 Ver: Center for Reproductive Rights, “Europe’s Abortion Law: A Comparative Overview”. Disponível em:
https://reproductiverights.org/europes-abortion-laws-comparative-
overview#:~:text=26%20out%20of%2028%20European,request%20or%20broad%20social%20grounds.
Acesso em 31.01.2021.

4 Cfr. NACIONES UNIDAS, Consejo de Derechos Humanos (2016), Informe del Relator Especial contra la
tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos y degradantes (A/HRC/31/57), 5 de enero de 2016,
pár. 44. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2016/10361.pdf Acesso em
31.01.2021.

¹Professora no Instituto Universitario de Estudios de la Mujer, da Universidad Autónoma de Madrid –
IUEM-UAM, doutoranda na Faculdade de Direito da Universitat de Barcelona – UB, pesquisadora.
** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
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