A guerra nunca foi contra às drogas, sempre foi extermínio

FONTEPor Natalia Andrade de Souza Honorato, enviado ao Portal Geledés
Foto: drasko/ThinkStock/

(Sobre)Viver no Brasil exige de nós muito esforço, sobretudo, das minorias étnicos-raciais. Nunca foi fácil ter que lidar com o racismo e com as desigualdades provenientes dessa estrutura, no entanto, sinto que desde 2016, ano em que a extrema-direita demarcava seu território e anunciava o que estava por vir, estamos protagonizando mais uma guerra que já acumula incontáveis mortes, físicas e simbólicas. Na verdade, o país está em guerra desde a invasão dos europeus. 

Genocídio, ecocídio, etnocídio. O projeto colonial no Brasil segue em curso e avança rapidamente. Enquanto tentamos nos recuperar de mais uma morte dos nossos, lá estão eles articulando mais um atentado às nossas vidas. 

O Estado com os seus aparatos institucionais, continua a legitimar toda violência direcionada ao povo preto. Enquanto escrevo esse texto, mais um jovem negro foi alvejado em uma troca de tiros entre a polícia e o tráfico, na chamada “guerra às drogas”, mas bem sabemos que a guerra nunca foi contra às drogas, tendo em vista que, como Marielle Franco bem pontua em sua tese de mestrado “UPP: a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, A UPP, deste modo, é apresentada por seus defensores como condição para superar a falaciosa “guerra ao tráfico”, uma vez que nem as drogas ilícitas, nem os armamentos de pequeno ou grande porte são produzidos nos territórios, aos quais é declarada uma guerra em que os inimigos são os que vivem nas favelas. Não há qualquer garantia ou indício de que o enfrentamento ao varejo do tráfico represente uma efetiva desmobilização do comércio de drogas. O que é vivido nesses territórios de permanência militar pode ser conceituado como uma “guerra aos pobres”. (FRANCO, p.76, 2014)

 Episódios recentes de violência policial têm ganhado cada vez mais destaque na mídia tradicional, repercutindo de forma ostensiva nas mídias sociais, o que considero importante esse espaço para promover discussões acerca de uma política de segurança que preze pela vida e não pela morte, no entanto, é fundamental lembramos que esse debate não pode e não deve se limitar no universo virtual e ressalto que essa discussão não cabe somente às pessoas negras, sobretudo personalidades negras que atuam também nos meios digitais, visto que o racismo é um problema de todos. A Jornalista Flávia Oliveira fez um desabafo em sua rede social (Twitter) sobre o caso do jovem negro abordado de forma desproporcional e violenta ao treinar de bicicleta em Góias, nas palavras de Flávia: “Por que quem identifica e se revolta com o racismo estrutural não pode tomar as próprias providências? Por que não marcam as autoridades policiais de Góias? Por que não viralizam o racismo institucional entre os amigos e conhecidos brancos? É madrugada de sábado. E eu estou verdadeiramente cansada. Meu ponto é que as pessoas assistem a essas cenas traumáticas, marcam pessoas negras e vão dormir. Há muita crueldade em despejar toda a responsabilidade do combate ao racismo aos negros. Sempre aos negros. Antirracismo é atitude.”

A feminista e intelectual negra Angela Davis já nos ensinou que “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.” O desabafo de Flávia Oliveira é o desabafo de muitas pessoas negras que diariamente são em certa medida cobradas por um posicionamento, sem que se levem em consideração a exaustão física e mental à qual a população negra está submersa, sendo afetada diretamente por esse sistema de opressão. 

O que proponho nesse breve texto é um despertar coletivo e a tomada de conscientização sobre o que nos constitui enquanto seres sociais e as nossas experiências individuais com seus respectivos atravessamentos de identidades, pois, como nos informa Carla Akotirene, com toda sua sabedoria ancestral, diaspórica e decolonial, “A interseccionalidade impede aforismos matemáticos hierarquizantes ou comparativos. Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade. (AKOTIRENE, p. 43-44, 2019)

Dessa forma, reafirmo a necessidade de nos reconhecermos individual e coletivamente pertencentes a determinados grupos sociais sob a devida leitura social do contexto histórico e político atual para que possamos elaborar estratégias de enfrentamento ao (des)governo que tem como principal ferramenta a necropolítica. De acordo com o pesquisador e professor, Achille Mbembe, entende-se por necropolítica “O Estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar. O poder de matar opera como apelo à “exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo, que precisam ser constantemente criadas e recriadas pelas práticas políticas.” (ALMEIDA, apud, MBEMBE, p. 118, 2019)

Nesse sentido, sob quaisquer circunstâncias, é inadmissível a naturalização do genocídio do povo preto e indígena. Quem não se revolta, não se indigna, não se entristece diante desse cenário político já perdeu o que talvez nunca tenha tido: consciência social e humanidade.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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