A história de John Edmonstone, o ex-escravizado que ensinou Charles Darwin, por Luis Gustavo Reis

Um dos protagonismos obstaculizados é o de John Edmonstone, o negro que ensinou taxidermia a Charles Darwin e influenciou decisivamente um dos cientistas mais celebrados do planeta.

FONTEPor Luis Gustavo Reis, do Jornal GGN
Edmonstone ensinando Charles Darwin. (Foto: State Darwin Museum, Rússia)

Num período futuro, não muito distante se formos medir em séculos, as raças humanas civilizadas irão, com quase certeza, exterminar e substituir, ao redor do mundo, as raças mais selvagens.

(Charles Darwin, A Descendência do Homem)

O protagonismo de milhares de personagens negros foi invisibilizado ao longo dos séculos e segue seu curso no mundo contemporâneo. Na área de Ciências, especificamente, as contribuições dessa população estão soterradas em grossas camadas de esquecimento, ofuscadas pela sombra de personalidades canonizadas. Desentulhar esses escombros é tarefa árdua, mas deveras urgente para desnaturalizar concepções viciadas e recompor as trajetórias daqueles que foram deixados pelo caminho, apagados pela névoa espessa do tempo.

Um dos protagonismos obstaculizados é o de John Edmonstone, o negro que ensinou taxidermia a Charles Darwin e influenciou decisivamente um dos cientistas mais celebrados do planeta.

Nascido no final de 1790, em Demerara, na Guiana, John Edmonstone trabalhou alguns anos numa empresa de corte de madeira. Filho de escravizados, perdeu os pais logo cedo e foi criado por companheiras e companheiros de cativeiro. Arrancados à força da África, cerca de 403 mil desafortunados cruzaram o Atlântico para serem escravizados nas fazendas agrícolas, sobretudo açucareiras, que funcionavam na então Guiana Britânica, território colonizado pelos ingleses no extremo norte da América do Sul.

Fazenda de corte de madeira do Sr. Charles Edmonstone. Riacho Mibiri, Rio Demerara. Thomas Staunton St Clair, desenhado por volta de 1808. Disponível em: http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1370

A maior parte do comércio da região era controlado pelos escoceses, donos das maiores fazendas de açúcar, café, algodão e madeira – principais produtos exportados para Europa. Entre os proprietários era Charles Edmonstone, arrendatário da fazenda onde John nasceu. Como era expediente comum na época, John recebeu o sobrenome de seu senhor e foi batizado como John Edmonstone.

A Guiana atraía pencas de europeus, entre eles cientistas, pintores, naturalistas, viajantes e aventureiros interessados em conhecer as particularidades do domínio britânico nos trópicos. Em meados de 1812, um excêntrico expedicionário desembarcou na região decidido a caminhar pela selva e coletar informações para seus estudos botânicos. Tratava-se de Charles Waterton, genro mais novo de Charles Edmonstone, senhor de John, e figura que mudaria decisivamente a vida de nosso personagem.

A passagem de Waterton pela Guiana foi marcada por situações insólitas. Numa delas, o cientista montou num crocodilo para testar a força do réptil. Além disso, conversou com insetos, mergulhou na lama e reverenciou formigas. Mas não foi apenas pelo exotismo que Waterton ficou conhecido. Ele foi o responsável por levar a curare para Europa, um extrato de planta paralisante usado por grupos indígenas guianenses, que posteriormente serviu de anestésico em operações cirúrgicas.

Durante as visitas que fazia ao sogro, Waterton aproveitava para conversar com John Edmonstone e trocar informações sobre a floresta enquanto o escravizado cortava madeira. Até que John, autorizado por seu senhor, passou a integrar as expedições de estudo e coleta de espécies, especialmente pássaros, organizados pelo excêntrico visitante. Para preservar o maior número de aves possíveis, que seriam expostas em seu museu, Waterton aplicava taxidermia, técnica bastante utilizada na época que consistia em encher de palha um animal morto a fim de conservar suas características.

Os pássaros coletados por Waterton precisavam de preservação rápida devido ao calor insuportável da Guiana e, carecendo de ajuda, escalou John como auxiliar. Numa passagem de suas memórias, o naturalista descreve:

“Foi nesta colina, antigamente, que tentei pela primeira vez ensinar a John, o escravo negro do meu amigo Sr. Edmonstone, a maneira correta de empalhar pássaros. Mas John tinha poucas habilidades e exigia muito tempo e paciência para digerir qualquer coisa. Alguns anos depois, seu mestre o levou para a Escócia, onde, ao se tornar livre, John o deixou e foi empregado em Glasgow [..].” (Waterton, Charles. Wanderings in South America, the north-west of the United States, and the Antilles in the years 1812, 1816, 1820 and 1824. London, 1825, p. 153 – 154)

Relatos apontam que Waterton era intempestivo, tinha temperamento explosivo, muito rabugento e raramente elogiava as pessoas – John não era exceção. No entanto, embora tenha descrito John como pessoa de “poucas habilidades”, fez inúmeras incursões com o auxiliar. E foi justamente as andanças pela selva, a observação atenta, as conversas intermináveis e a curiosidade aguda que fizeram John aprender o ofício taxidérmico. Essa arte fará dele um profissional qualificado e respeitado.

Na primavera de 1817, temendo as sucessivas rebeliões de escravizados que assolavam Demerara, Charles Edmonstone fugiu às pressas para Escócia. Junto consigo, migrou a família, alguns pertencentes e seu escravizado, John Edmonstone. A condição jurídica de John mudou pouco tempo depois do desembarque no Reino Unido. Após alguns meses, o cativo negociou o valor de sua liberdade e comprou a alforria com recursos juntados ao longo de anos de serviços prestados. Sozinho no Velho Mundo, alugou uma casa modesta na cidade de Glasgow onde morou até meados de 1823.

Durante o século XIX, a taxidermia encantou diversos europeus que corriam aos museus e zoológicos ansiosos por observar animais empalhados oriundos de diferentes lugares do mundo. Muitas pessoas faziam coleções de espécies taxidermizados, especialmente pássaros, como ocorreu com a Rainha Vitória do Reino Unido.

Aproveitando a “moda” vigente no Reino, a farta demanda por serviços e a carência de profissionais, John Edmonstone negociou contratos e prestou serviços com centenas de interessados. Como consequência do dinamismo e das habilidades taxidérmicas que dominava, galgou reconhecimento e prestígio na metrópole britânica. O serviço de naturalista possibilitou a mudança de cidade, a compra de uma vistosa casa e a abertura de uma loja na distinta 37 Lothian Street, vizinha à Universidade de Edimburgo. Nos registros do Scottinsh Post Office Directories, Diretório de Correios Escocês, John aparece recenseado:

Em 1823, o Diretório registra John “Edmonston”, profissão “bird-stuffer”, ou seja, taxidermista de pássaros, proprietário de uma loja na “37. Lothian street”. Post Office annual directory 1823-24. Disponível em: https://digital.nls.uk/83136764

Os negócios do naturalista decolavam. Diariamente, toda sorte de espécie chegava às suas mãos, trazidos por viajantes que atravessavam oceanos em busca de animais “exóticos” e desconhecidos na Europa. Nos idos de 1824, representantes do Museu Zoológico de Edimburgo foram à sua loja e compraram 15 jiboias, duas andorinhas, um tentilhão e algumas peixes – todos taxidermizados.

As incontáveis horas de trabalho, porém, não impediram que no dia 12 de dezembro de 1824, cercado de amigos, religiosos e alguns curiosos, celebrasse seu casamento com Mary Kerr, funcionária contratada como secretária de sua loja e pessoa com quem viveu por longos anos.

Certidão de Banho (Proclamas) de John Edmonstone ‘Birdstuffer’ e Mary Kerr. O documento era exigido aos nubentes antes do matrimônio. National Records of Scotland, OPR 685/2 400, página 652, St Cuthbert’s.

A mudança para Edimburgo trouxe consequências substantivas na vida de John Edmonstone. A fama do “naturalista negro” correu a cidade aponto do diretor do Museu Natural da Universidade de Edimburgo contratá-lo como auxiliar no setor de taxidermia. A função subalterna durou pouco e logo John assumiu a chefia do departamento.

Em 1825, meses depois de John ser promovido, um jovem estudante de Medicina ingressou na Universidade de Edimburgo. Aos 16 anos de idade, pejoso e introspectivo, Charles Darwin passava o dia assistindo palestras, realizando pesquisas, rascunhando ideias e devorando livros de história natural. O curso de Medicina, porém, pouco interessava o discente, que arrastou a graduação por dois anos até desistir da carreira clínica. Mas Darwin largou o estetoscópio para agarrar com afinco as ferramentas que auxiliavam seus estudos de naturalista e potencializam a paixão devastadora que nutria pelas ciências biológicas.

Quando chegou em Edimburgo, Darwin foi morar num alojamento estudantil na 11 Lothian Street, duas casas antes de John Edmonstone. Informado sobre as habilidades do taxidermista, Darwin resolveu contratá-lo como professor particular. O imberbe queria aprender a técnica de empalhar pássaros que o notório afro-guianense dominava como ninguém. Numa carta endereçada à sua irmã, Susan Darwin, datada de 29 de janeiro de 1826, o cientista relatou o início da relação com John:

“Vou aprender a empalhar pássaros com um blackamoor [termo depreciativo adotado para nomear os negros], creio que um velho servo de D. Ducan. [Ele] só cobra um guinéu, por uma hora todos os dias por dois meses.” (Darwin Correspondence. Project. University of Cambridge. Disponível em: darwinproject.ac.uk/letter/DCP-LETT-22.xml)

As aulas começaram no escaldante verão de 1826, prolongando-se por quase três meses a pedido do tutorado. Toda tarde, John saía do museu e corria para casa onde o ansioso Darwin o aguardava. Após tomarem o chá preparado Mary Kerr, iniciavam as incursões ao sofisticado processo.

Nos primeiros encontros, John explicou a função que cada ferramenta cumpria e o momento correto de empregá-las durante o procedimento. A lista incluía pinças, facas, tesouras, alicate, arame, martelo, bolinhas de gude, fita métrica e outros acessórios. Cumpridas as etapas iniciais, as orientações avançavam para os componentes químicos usados no empalhamento. As aulas de alquimia serviram para Darwin aprender que o formol mantinha o tecido das aves conservados; o tetraborato de sódio secava e fixava a pele; o sal compunha a solução química aplicada no curtimento da pele, momentos antes do processo de enchimento. Além disso, Darwin descobriu que tinta e pincel eram fundamentais para realizar eventuais reconstituições na finalização da espécie taxidermizada.

Somente depois de aprender a função das ferramentas e a aplicação dos compostos químicos, John ensinava Darwin o mecanismo de empalhamento propriamente dito. Combinando técnicas de marcenaria, carpintaria e modelagem, habilidades manuais rebuscadas – diga-se de passagem – o professor guianense mensurava e anotava as principais medidas da ave. Em seguida, faca afiada em punho, extraía as vísceras e dissecava o interior do pássaro. Com cuidado, retirava a endoderme, fina membrana colada à pele, e encharcava o animal com produtos químicos. Após a secagem das penas, John preenchia todo o corpo com palha – por isso a palavra “empalhamento” – antes de aplicar formol. Na finalização, a tinta retocava a penugem deformada e duas bolinhas de gude ocupavam o lugar dos olhos. Por fim, bastava costurar e mais um animal havia sido taxidermizado.

Darwin observava e anotava todo o passo a passo, explicado pacientemente pelo dedicado tutor. No final de cada aula, antes de abrir a porta, o aluno desembolsava 1 guinéu (antiga moeda inglesa) pelos conhecimentos adquiridos que extrapolavam a taxidermia. John também ensinava ao inquieto aulista aspectos da fauna e flora da América do Sul, especialmente as florestas de Demerara que ainda perturbavam na memória.

Em uma passagem de sua autobiografia, escrita anos depois, Charles Darwin menciona timidamente o mentor intelectual:

“A propósito, havia um negro que morava em Edimburgo e tinha viajado com [Charles] Waterton. Ganhava a vida empalhando pássaros, o que fazia de forma excelente: ele me deu aulas […] e eu costumava sentar-me com ele, muitas vezes, pois era um homem muito agradável e inteligente.” (BARLOW, Nora. The Autobiography of Charles Darwin, 1958, p. 51).

Cinco anos após finalizar o curso, Charles Darwin, com então 22 anos, recém-formado pela Universidade de Cambridge embarca numa viagem memorável. Em dezembro de 1831, a bordo do veleiro HMS Beagle, a serviço da Marinha Real Britânica, o cientista partiu para o Hemisfério Sul. Na bagagem, além da curiosidade, do espírito aventureiro, das ferramentas de trabalho, da caderneta de anotações, levava os ensinamentos de seu professor John Edmonstone que foram providenciais à expedição.

Das muitas espécies coletadas por Darwin durante os cinco anos de navegação, quase 500 eram peles de pássaros taxidermizados com as técnicas de John. Esses pássaros, recolhidos sobretudo nas Ilhas Galápagos, foram fundamentais para teoria que o cientista desenvolveria anos depois. Ao observar as aves, Darwin acreditava que tinham um ancestral comum, mas evoluíram em ambientes distintos: os que sofreram mutações vantajosas para seu meio sobreviveram e transmitiram as características aos seus descendentes. Os que não se adaptaram foram desaparecendo.

Em 1859, Darwin publicou seu livro mais famoso: A Origem das Espécies. Nele, o autor afirmava que todas as formas de vida na Terra – vivas ou extintas – tinham algum parentesco entre si. Isso significava que todos os seres vivos tinham, em algum momento do passado, um mesmo ancestral. Além disso, tecia considerações sobre a seleção natural, resumidamente entendida como a “sobrevivência do mais apto”. Nesse volumoso compêndio, Darwin reafirmava as hipóteses que os pássaros taxidermizados das Ilhas de Galápagos haviam sinalizado.

Mas a maçã envenenada do pensamento de Darwin seria servida em 1871, quando lançou A Descendência do Homem e a Seleção Sexual. Esse livro inaugurou as bases científicas da eugenia darwiniana, cuja epígrafe escolhida para esta missiva evidencia: “as raças humanas civilizadas irão […] exterminar e substituir […] as raças mais selvagens”. O trecho corroborava o vaticínio da “sobrevivência do mais apto”, divulgada 12 anos antes, mas emanava uma diferença nevrálgica: a teoria, antes restrita a determinadas espécies, agora seria aplicada aos seres humanos.

Charles Darwin forjou a moldura de suas teorias na fornalha racista do século XIX, sofrendo influências e propagando preconceitos. Uma passagem de A Descendência do Homem escorre toda sordidez do veneno eugenista:

“Entre os selvagens, os mais fracos física ou mentalmente são logo eliminados; e aqueles que sobrevivem geralmente são portadores de um estado vigoroso de saúde […]. Nós homens civilizados, por outro lado, fazemos o máximo que podemos para reprimir esse processo de eliminação; construímos asilos para os imbecis, os mutilados e os doentes; instituímos leis para beneficiar os pobres; e nossos médicos gastam suas habilidades mais extremas para salvar a vida de qualquer um, até o último instante. […] E eis que os membros mais fracos de uma civilização propagaram suas crias. Ninguém que já tenha se dedicado à criação de animais domésticos pode duvidar que isso é extremamente ofensivo à raça humana. É surpreendente o quão cedo a ausência de cuidados, ou o mau direcionamento dos cuidados pode degenerar a raça de um animal doméstico; mas, exceto no caso da procriação da própria espécie, raramente um homem é tão ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzam.” (DARWIN, Charles. A Descendência do Homem e a Seleção Sexual. São Paulo: Hemus, 1974. (1871), p. 168.)

A causa primeva da regressão na escalada evolucionária da civilização, portanto, ocorria devido ao “mau direcionamento dos cuidados”. Em outro trecho, Darwin assegurava que se “as várias limitações […] não forem capazes de prevenir que os desocupados, os viciados e outros membros inferiores da sociedade cresçam em maior escala e rapidez que a classe dos melhores homens, a nação irá regredir”. Visivelmente preocupado, alertava seus homólogos: “Devemos nos lembrar de que o progresso não é uma lei invariável”. (Ibid., p. 177)

A eugenia era uma ciência pragmática, experienciada de maneira prática. Dentre as alternativas, os ideólogos defendiam que os seres humanos poderiam ser criados como animais de fazenda. Os melhores elementos do criadouro (“civilizados”) deveriam gerar filhos, enquanto os piores (“selvagens”, “inaptos”) seriam eliminados. Em outros termos, somente algumas mulheres e homens inteligentes, saudáveis e aptos teriam descendentes a fim de gerarem uma raça perfeita, enquanto os que escapavam dos padrões seriam exterminados.

Entre os séculos XIX e XX, a semente eugenista achou terreno fértil na Alemanha nazista, embora tivesse germinado em outras paragens da Europa e das Américas pela ação de cientistas comprometidos com os estudos de Darwin. Não por acaso, portanto, os nazistas foram os principais propagadores da teoria darwiniana sustentando que a própria natureza favorecia os mais aptos e renegava os mais fracos. Além disso, afirmavam que a sociedade deveria contribuir com a seleção natural, eliminando qualquer mecanismo de proteção aos mais fracos e deixando-os sucumbir a própria destruição.

A derrocada do Terceiro Reich alterou as peças do tabuleiro, obrigando parte dos cientistas a problematizarem e escamotearem a eugenia darwiniana. O fim da Segunda Guerra Mundial também engendrou esforços substantivos para descolar o nome de Darwin dos movimentos eugenistas, sobretudo porque Hitler levou a eugenia ao paroxismo e carimbou uma péssima reputação à teoria da seleção natural.

O pensamento eugenista era um desdobramento da “teoria da evolução” darwiniana, como ficou exposto na publicação sequencial de A Origem das Espécies e A Descendência do Homem e a Seleção Sexual. Feita a devida ligação histórica entre as obras, voltemos a John Edmonstone.

Afinal, o que nosso personagem tem a ver com tudo isso? Seria somente oportunismo deste escriba inferir, como feito até aqui, que John contribuiu tenazmente na formulação da “teoria da evolução” sem que fosse devidamente reconhecido. Isso é fato! Mas é preciso complexificar a suposição e devolver as vestes humanas do biografado, retirando-o do pedestal da exclusão e da injustiça a qual foi submetido.

Ajustemos as lentes do microscópio a fim de enxergar os elementos com mais acuidade. Ora, se a taxidermia ensinada por John foi fundamental para Darwin estabelecer o estudo comparativo de determinados animais que viveram em períodos e lugares diferentes, sobretudo porque a técnica conservou as espécies e possibilitou mensurar as mudanças sofridas por cada uma delas, o rescaldo também é verdadeiro. A “teoria da evolução”, que carrega em sua gênese os ensinamentos de John Edmonstone, pariu o pensamento eugenista darwiniano. Ainda que indireta e involuntariamente, portanto, as impressões digitais de John também estão registradas no pernicioso DNA eugenista. Uma teoria é continuidade da outra, irmãs siamesas impossíveis de serem separadas.

Com o passar dos anos, a “teoria da evolução” ganhou força científica e figura entre as ideias mais discutidas no mundo atualmente. O pensamento eugenista, embora abertamente refutado, continua sendo propagado por alguns cientistas, incluindo o prêmio Nobel James Watson, que em 2007 declarou ser “pessimista a respeito do futuro da África”, porque “todas as nossas políticas sociais são baseadas na suposição de que a sua inteligência (dos africanos) é a mesma dos brancos, quando todas as provas indicam que não é assim”.

Charles Darwin foi alçado ao panteão científico como referência suprema devido os estudos que realizou. O naturalista recebeu honrarias póstumas, nomeou centros de estudos, batizou museus, ilustrou cartazes em grandes avenidas e influenciou peremptoriamente o pensamento científico ocidental. Uma miríade de estudantes ostenta seus volumosos livros nos corredores universitários em diferentes partes do globo.

Enquanto isso, John Edmonstone foi tragado pelo anonimato e pela indiferença. Documentos apontam que até 1843, diariamente após o expediente, recebia legiões de jovens em sua casa interessados em aprender as técnicas de taxidermia. O velho professor ainda morava na mesma rua Lothian Street, número 37, na companhia da esposa Mary Kerr. Quinquagenário, assistiu do epicentro a ascensão da Era Vitoriana como expectador atento aos movimentos e transformações do Império Britânico.

Nada sabemos sobre seus últimos dias de vida e sua trajetória ainda carece de pesquisadores interessados em retirá-lo do ostracismo da memória. Assim como milhares de outros, John desceu a sepultura sem o devido reconhecimento, suas contribuições científicas foram radicalmente ignoradas e suas habilidades sequer perfilam nos manuais de biologia. Como prêmio, recebeu o desprezo da comunidade científica internacional.

A história de John Edmonstone e Charles Darwin é a metáfora perversa do racismo taxidermizado que atravessa séculos e tritura milhares de seres humanos nas implacáveis engrenagens da História.

*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios incendiários sobre um mundo normatizado (2021).

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