A humilhação como tecnologia de controle da população negra

FONTEPor Fabiane Albuquerque, enviado ao Portal Geledés
O vigilante Everaldo da Silva Fonseca (Foto: Arquivo Pessoal)

                                                                     Os humilhados serão exaltados, Lucas, 14:11. 

                                                                                                 (Só que não!)

Para minha tese de doutorado em sociologia, sobre corpos de imigrantes na mídia italiana, utilizei um artigo científico de Jacinthe Mazzocchetti intitulado Le corps comme permis de circuler: du corps-héros au corps souffrant dans les trajectoires migratoires et les possibilites de régularisations (Corpos como permissão de circular: de corpos-heróis a corpos sofridos na trajetória migratória e as possibilidades de regularização). A autora diz que os corpos que migram são corpos heróis porque, para o ato de migrar ou fugir dos seus países, é preciso, muitas vezes, ter o mínimo de força, de saúde e, em grande parte, até de dinheiro e de contatos. Esses corpos atravessam diversos países, o que exige grande esforço, mas a degradante trajetória e, com os inúmeros obstáculos que encontram, eles passam de corpos “em pé” a “corpos de joelhos” até chegar ao destino final (Europa). Muitos deles são presos em Centros de Detenção para imigrantes, são fotografados em situação insalubre e as imagens são cedidas à grande mídia que, por sua vez, faz o trabalho de estigmatizá-los antes mesmo do convívio com os europeus. Além do percurso degradante, eles são torturados por agentes dos Estados nas fronteiras ou em estruturas de primeira acolhida.

Por toda Europa existem Centros de Identificação e Detenção para migrantes e refugiados que são verdadeiras prisões e ali, sem que esses tenham cometido crime algum, passam meses e até anos. Ao chegar na Comunidade Europeia, depois de um longo processo de humilhação, esses corpos, segundo a autora, estão dóceis para serem dominados e explorados.

O que isso tem a ver com a população negra no Brasil? Ao longo da vida, negros e negras passam por um processo de humilhação tão grande e constante que isso os desvitaliza de tal forma que muitos, assim como os imigrantes, tornam-se, não somente dóceis e conformados, mas perdem a capacidade de reagir devido ao cansaço físico e emocional que provoca feridas profundas na psiquê, quando não, doenças derivadas desse tipo de tratamento: hipertensão, problemas de pele, depressão, ansiedade, síndrome do pânico, problemas cardíacos ou distúrbios alimentares. A humilhação equivale ao rebaixamento, à diminuição da pessoa e do seu valor no mundo e quando ela é um projeto de sociedade, tem a função de reduzir  a pessoa ou grupo humilhado até fazê-la desaparecer, material ou simbolicamente.

Isso se dá através das instituições sociais e de seus agentes. Corpos negros experimentam, desde o nascimento, uma carga de violência inimaginável que, com o passar dos anos, essa violência deixa de ser vista como algo anômalo para ser vista como natural, como parte da vida de uma pessoa negra. Basta notar como ainda nos surpreendemos ao sermos bem tratados em consultórios médicos: “Que médico humano, ele falou comigo e me olhou nos olhos!”

Mulheres negras no Brasil são as maiores vítimas de violência obstétrica, crianças negras aprendem, já nos primeiros anos de escola, que a instituição é uma forma de introduzi-las à humilhação, à ridicularização e ao seu “não valor” no mundo. As delegacias de polícia são verdadeiros laboratórios de humilhar pobres e negros no Brasil. O descaso para com esses corpos se dá em todos os âmbitos da sociedade, basta ver o judiciário e suas sentenças racistas.

As filas no Brasil, em órgãos públicos ou privados existem para humilhar os pobres, os transportes públicos, abarrotados de corpos como sardinhas, também. E quais as consequências desse projeto? Quando corpos passam a vida inteira sendo humilhados, eles perdem a capacidade de reagir, de se revoltar e questionar, porque, quando isso vira rotina, o comum se torna a norma e, com isso, não há estranhamento. O estranho é ser tratado como cidadão, com dignidade. Nessas condições, transformando “corpos em pé” em corpos “de joelhos”, a dominação fica mais fácil. Corpos negros são vigiados em shoppings, supermercados, lojas e, em qualquer lugar que frequentam, os olhares recaem sobre eles. Essa humilhação é Tecnologia de Controle. 

Corpos humilhados, quando se rebelam contra o sistema, são humilhados em dose dupla, para que se calem e aprendam a estar no “seu lugar”. É o caso do jovem acusado de roubar uma bicicleta elétrica no Rio de Janeiro que se dirigiu à uma delegacia para registrar um B.O de racismo, mas passou a ser ele o investigado pela origem da bicicleta. É o caso do jovem que foi registrar o roubo de sua moto e acabou preso, é o caso da jovem violentada dentro de uma viatura da polícia e o juiz absolveu os acusados alegando que houve consenso, já que a vítima não reagiu. É o caso de atletas negros que denunciam racismo e nunca mais conseguem patrocinadores ou são excluídos dos clubes. E casos no Brasil não nos faltam como exemplo.

Dados do Infopen sobre a cor dos brasileiros presos mostram que mais da metade dos presos no Brasil (61,6%) são declarados negros. Esse perfil da população carcerária demonstra o quanto os negros e negras no Brasil têm, como imagem de si, uma das maiores populações carcerárias do mundo. Não é que negros cometam mais crimes, é que brancos, sobretudo ricos, não vão para a cadeia. Exemplo disso é a sentença da juíza da 5ª Vara Criminal de Campinas, Lissandra Reis Ceccon, que escreveu a respeito de um réu suspeito de latrocínio que esse não teria as feições típicas de um ladrão, já que é branco com cabelo, pele e olhos claros.

No filme italiano “A décima morte”, de Elio Petri, tem uma fala de um dos personagens bastante intrigante: “Porque controlar os nascimentos se podemos aumentar a morte?”  Não se investe em condições dignas, em planejamento familiar, em políticas de combate à desigualdade para a população negra porque, além do genocídio como tecnologia de controle, a humilhação é uma das formas mais eficazes de morte, sobretudo porque não deixa rastros e o ônus recai todo sobre o indivíduo atingido. 

Uma outra forma de humilhação de negros e negras no Brasil é a televisão. Novelas e telejornais “pinga-sangue” nos humilham diariamente ao trazerem corpos negros apenas em situação de submissão, como subproduto da sociedade, como representantes da criminalidade e da degeneração social.  Onde estão os brancos e burgueses que diariamente cometem crimes no Brasil? Onde está a polícia, com o jornalista e sua câmera, invadindo casas no Morumbi, Jardins ou Copacabana para prender traficantes de asfalto, corruptos, estupradores e mandantes de assassinatos? 

As estruturas dessa sociedade capitalista e racista precisam mudar, mas enquanto isso não acontece, deixo aqui um trecho de uma carta do intelectual negro estadunidense James Baldwin, radicado na França para escapar da humilhação da segregação no seu país, ao seu sobrinho James. Ele entendeu os mecanismos do racismo e esta tecnologia.

“Saiba de onde você veio. Se você sabe de onde veio, realmente não há limite para onde pode ir. Os detalhes e símbolos de sua vida foram construídos deliberadamente para fazer você acreditar no que os brancos dizem sobre você. Por favor, tente lembrar que o que eles acreditam, bem como o que eles fazem e fazem com que você sofra, não testemunha a sua inferioridade, mas a sua desumanidade e medo.” James Baldwin

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia pela UNICAMP, autora do romance “Cartas à um homem negro que amei” pela Editora Malê.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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