A juventude negra não quer apenas consumir a diversidade. Ela quer criá-la

FONTEECOA, por Adriana Barbosa
Adriana Barbosa (Foto: Renato Stockler/NA LATA)

Passei por uma das melhores experiências da minha vida quando produzi, no ano passado, o Festival Pretas Potências. Como parte da construção do conceito do Festival Feira Preta que completara sua maioridade no mesmo ano, realizamos uma imersão estruturada em torno do número 18.

Por alguns dias, reunimos 18 jovens negros, de 18 anos de idade, sensíveis às questões raciais, para participar de uma imersão que teve o objetivo de refletir sobre quais são as histórias e vivências que criaram os caminhos que trouxeram a população negra até onde ela está hoje, nas mais diferentes áreas de atuação.

Aquele momento da imersão nos permitiu ouvir jovens que não passaram pelo processo de “se tornar negro”. Uma geração que “já nasceu negra”. Junto com os convidados griots, como são conhecidos os guardiões da memória africana e afrobrasileira, responsáveis por passar aos jovens os ensinamentos desta cultura, criamos um momento de passagem de bastão. Foi um momento bonito de compreensão de que nossos passos vêm de longe e não precisamos reinventar a roda. Temos um legado histórico e cultural que nos permite, a partir dos nossos saberes, transformar a forma de pensar e executar de forma sustentável e inclusiva o desenvolvimento social e econômico.

Vemos um grande número de jovens negros empreenderem e co-criarem suas próprias narrativas, a partir de cenários mais colaborativos e generosos, se apropriando de diferentes mecanismos, como o ambiente digital e as novas tecnologias. Se você precisa de trabalho, você cria um trabalho.

Segundo o estudo Empreendedorismo Negro no Brasil, realizado pela PretaHub, Feira Preta, Plano CDE e o JP Morgan, essa geração não pensa o trabalho formal como única opção possível, característica marcante dos seus pais, por exemplo, e ele passa a ser visto mais como elemento de realização e expressão. O empreendedorismo adquire novos significados, eles idealizam autonomia, serem dono dos seus próprios negócios e a conexão entre realização pessoal à profissão dos seus sonhos.

Este pensamento tem impactado o mundo do trabalho de forma irreversível e tem possibilitado pensar novas formas de inserção de uma juventude historicamente marginalizada em grupos economicamente ativos, a partir do fortalecimento da noção da economia criativa, a partir dos negócios que integram a cultura de todo um povo ao desenvolvimento de produtos e serviços que solucionam problemas de grupos específicos e, exponencialmente, de toda uma sociedade.

Um exemplo é a Sue The Real, estúdio de jogos fundado e composto por Raquel Motta e o Marcos Silva, que cria experiências emocionais e de impacto social por meio de jogos com temáticas afrobrasileiras. Outro é a Agência de Cultura Solano Trindade que criou a Solano, moeda solidária que gera economia com a compra de serviços e produtos na região do Campo Limpo, em São Paulo, capital. Estas iniciativas buscam combater a lógica de que jovens são apenas consumidores. Nestes modelos, eles consomem aquilo que os seus desenvolveram, profundo conhecedores que são de suas necessidades reais.

A “cultura” merece atenção especial, pois é nela que reside a noção de identidade. Hoje, é mais que sabida a crescente demanda não apenas por produtos e serviços finais, mas pelas trajetórias que os fazem ser o que são. Quem, como e onde são produzidos os produtos e serviços induzem o consumo. Amplia-se o leque da cultura para além das artes, pois incluem-se as atividades econômicas baseadas no conhecimento, na criatividade e no capital social. A integração desses agentes possibilitará que a diversidade cultural, de saberes e fazeres atrelados às diferentes identidade sejam valorizados, repercutindo no desenvolvimento de uma sociedade justa e sustentável.

Para a pesquisadora de urbanismo e cultura, Ana Carla Fonseca Reis, é categórica: “A economia da cultura abrange as indústrias culturais, mas não se limita a elas, compreendendo atividades como artesanato, turismo cultural, festas e tradições, tudo isso compondo patrimônios tangíveis, intangíveis e afins. A economia da cultura, ou criativa, parte do princípio de que os bens e serviços culturais trazem em si um valor cultural e um valor econômico”.

Hoje, milhões de pessoas se autodeclaram negras (pretas ou pardas, de acordo com o IBGE), um contexto bem diferente “da minha época” e isso transforma o Brasil no país com maior contingente negro fora de África, uma população cada vez mais ciente de sua potência criativa e consumidora. Diante disso, não absorver o que realizam os jovens negros evidencia não apenas o racismo internalizado, mas também uma inabilidade estratégica de fortalecimento de reputação, expansão de mercado e, consequentemente, de lucratividade.

A juventude negra, ancorada nos passos de seus mais velhos, segue transcendendo os processos de embranquecimento impostos por uma sociedade estruturalmente racista e, hoje, tem orgulho de ser o que é. É uma geração que quer não apenas consumir a diversidade, mas também criá-la e pautá-la.

É um caminho sem volta.

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