A legalidade das ações afirmativas

FONTEPor Beatriz de Almeida, enviado para o Portal Geledés
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Após a divulgação do processo seletivo para a contratação de trainee da empresa Magazine Luiza, alguns questionamentos e posicionamentos bastante polarizados acerca da legalidade das políticas afirmativas que visam a contratação e inserção da população negra no mercado de trabalho.

Muitos foram os argumentos, alguns com embasamentos, outros fundamentados somente no inconformismo pessoal de grupos privilegiados, mas, dentre os principais argumentos está a afirmação ou a infirmação do racismo.

Entretanto, a fim de entender o racismo, faz-se necessário compreender primeiro o que é hegemonia.

Em síntese, o conceito de hegemonia foi lapidado primeiramente por Antonio Gramsci, hoje pode ser entendida como uma estratégia de classe, pois significa o exercício do poder por um conjunto de indivíduos de uma determinada classe ou de determinadas classes (entendida como conjunto de valores, ideias, crenças, raças) que acaba por propagar a ideologia do grupo dominante de forma que sejam aceitas e assimiladas como verdades inquestionáveis. Quanto mais difundida uma determinada ideologia, mais sólida fica a hegemonia e há menos necessidade do uso de violência explícita.

Assim sendo, a hegemonia é uma dominação consentida, baseando-se em um instrumento invisível no qual posições de influência na sociedade são sempre ocupadas por membros de uma classe já dominante, e tem como resultado final a difusão das ideias da classe dominante por toda a sociedade. 

Como se pode ver o racismo é uma estratégia hegemônica para manter os grupos racializados, no caso do Brasil a população negra e indígena, em situação de domínio e precariedade, mantendo os privilégios dos grupos privilegiados.

Além das considerações sociológicas, também é importante a correta interpretação do direito e das normas.

 Assim, compreender o direito exige cognição, conhecimento de argumentos para além do que está simplesmente escrito. Nesse sentido Humberto Ávila (2013),  ensina uma valiosa lição acerca da interpretação das normas, o autor aponta que a interpretação no direito envolve o conjunto de razões utilizado para justificar e embasar o entendimento normativo, em outras palavras, a interpretação legal está embasada em argumentos linguísticos (etimologia e significados das palavras); argumentos históricos; argumentos genéticos (que envolvem os trabalhos preparatórios das normas, por exemplo as discussões nas casas legislativas, projeto de lei, pareceres); argumentos finalísticos (finalidade da norma); argumento sistemático (interpretação do conjunto de normas de mesma natureza ou que regulam a mesma matéria).

Decerto a pertinência das ações afirmativas voltadas à população negra é justificável por todos os argumentos interpretativos possíveis, conforme será exposto adiante.

No que tange aos argumentos históricos que remontam um passado (ainda presente) e argumentos genéticos que apontam para a negação de direitos básicos à população negra. 

Primeiramente, o movimento abolicionista brasileiro não foi iniciado, tão pouco concluído por questões humanísticas, mas sim econômicas, que visavam atender aos diversos embargos impostos pela Inglaterra que havia iniciado o seu processo de industrialização e de início do capitalismo, sistema que não se sustentava por questões óbvias não se sustentava em uma sociedade escravocrata.

Assim como a Lei de Terras de 1850 foi utilizada para que negros não tivessem acesso a terras, avançando algumas décadas, a lei¹ de imigração europeia, aliás, a primeira lei de cotas do Brasil e que tinha como objetivo branquear a república, complementada pelo Decreto 528/1890, que proibia a entrada de africanos no país demonstram que a abolição não era fruto da humanização dos grupos dominantes. No mesmo sentido, os ²Códigos Municipais de Posturas, como o de 1886 (que vigeu até meados de 1920) da Cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, previam diversas proibições aos negros, vedando que ocupassem determinadas cargos ou exercessem algumas profissões, proibindo que habitassem ou estabelessecem moradia em determinados bairros e regiões da cidade.  Logo, normas como essas, a marginalização e a precarização foram aumentadas e estruturadas. 

Também é importante mencionar as discussões que surgiram para sustentar o projeto de ³extermínio da população negra e de projetos segregacionistas que visavam impedir o ingresso de negros no Brasil. Em fevereiro de 1934, Miguel Couto afirmou, na Assembleia que “pretos, amarelos e brancos; classifiquem-nos como quiserem, mas são diferentes” e que apenas brancos “indo-europeus” seriam desejáveis, “porque o progresso das sociedades e a sua riqueza e cultura são criação dos seus elementos eugênicos” e a superioridade de algumas raças em relação a outras, para Miguel Couto, afetava a cultura e a prosperidade de um povo⁴. 

Como resultado de tais discussões originou-se, mais adiante, a Constituição Federal de 1934 previa a obrigação de educação eugenista e de higienização racial. 

Acerca da teoria da eugenia, eugênica ou eugenista cabe ressaltar que surgiu em 1883 difundida por Francis Galton, que dizia que quanto mais pura e mais forte a raça, melhor ela será, tal pureza era associada à brancura e aos povos arianos.

O Brasil contou com eugenistas declarados como: Monteiro Lobato que em uma carta para Angola escreveu que o Brasil tinha uma “pretalhada inextinguível”; Nina Rodrigues, homenageado na Universidade de São Paulo-USP em 2006 e precursor da patologização do crime no Brasil, ou seja, a partir do fenótipo e genótipo era possível determinar a probabilidade de um indivíduo para cometer crimes, neste viés, pelos “estudos” tal patologia crônica era característica da população negra.

Destarte, estes são alguns argumentos históricos, mas existem muitos outros registros que poderiam ser apresentados, contudo, não serão expostos nesta análise, haja vista a necessidade de apresentar outros argumentos de interpretação.

Ante os fatos apresentados e a negação evidenciada, a partir da Constituição Federal de 1988, e da introdução do atual modelo de democracia, o Brasil instaurou metas e objetivos para extinguir o racismo e outras formas de discriminação. 

 Seguramente os princípios constitucionais possibilitaram o surgimento e a adoção de medidas que visam a tentativa de efetivação do conjunto sistemático de normas antirracistas, de direitos humanos e antidiscriminatório, tanto de ordem nacional e quanto internacional, dentre as quais podem ser destacas:

 

  • Decreto nº 65.810, de 8 de Dezembro de 1969, decorrente da ratificação à Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), o Brasil comprometeu-se a promover políticas que eliminem todas as formas de discriminação racial por meio de ações como: garantia de igualdade de todos os indivíduos perante a lei; elaboração de leis que declarassem atos de discriminação delitos puníveis; e favorecimento a organizações e movimentos multirraciais.
  • Constituição Federal de 1988, artigo 3º, inciso IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”; artigo 4°, inciso VIII “repúdio ao terrorismo e ao racismo”.
  • Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro de 1989, Lei Caó,  que define os crimes de preconceito de raça e cor e estabelece penas para os casos que envolvem discriminação em ambientes de trabalho públicos e privados, para casos em que a pessoa tenha o emprego negado, seja impedida de ter acesso a cargos de administração direta, sofra tratamento diferenciado, seja impedida de prestar serviço militar.
  • Lei 12.288, de 20 de Julho de 2010 que define o Estatuto da Igualdade Racial.

 

Importante lembrar que a lei nº 7116/1989 foi utilizada recentemente por um deputado para sustentar que processos seletivos exclusivos para a população negra tinham cunho racista contra os brancos, contudo, tal parlamentar demonstrou desconhecer qualquer regra de hermenêutica e também o procedimento  pelo qual um projeto de lei passa até ser aprovado, em especial, o Projeto de Lei nº 052, de 1988, que deu origem à Lei Caó. 

A referida lei foi promulgada para a proteção da população negra, nesse sentido manifestou-se o então presidente José Sarney em uma das fases do projeto:

⁵“O Deputado Carlos Alberto Caó tem a pretensão, expressada pelo projeto de lei em epígrafe, de definir os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

A proposta de lei nasceu da convicção, demonstrada na justificação do projeto de lei, de que o Brasil é um país racista e, assim sendo, o negro, apesar de ter conquistado sua liberdade, ainda não conseguiu integrar-se à sociedade como cidadão, o que é percebido na dificuldade de acesso do discriminado à vida econômica e política do País.

Acredita o Deputado que se tipificar a conduta da discriminação racial como crime, atribuindo-se ao transgressor desta norma “penas que possam ser sentidas no seu cumprimento”, o Brasil sairá do rol dos países discriminadores.

À luz da Constituição vigente, não há vícios constitucionais a obstaculizar o progresso na proposição”.

Portanto, o projeto e a lei surgiram a partir do reconhecimento do racismo explícito promovido pela sociedade brasileira contra a população negra e não o contrário, como dolosamente usam alguns representantes públicos que desconhecem a história e a lei da sociedade que deveriam representar.

Diante do exposto, passa-se ao apontamento dos argumentos finalísticos, de modo que a lei não pode ser interpretada de forma contrária à sua finalidade.

Portanto, o que fez o deputado Carlos Jordy ao acionar o Ministério Público, bem como o que fez o defensor público Jovino Bento Junior ao ajuizar ação civil pública fundamentadas no “racismo reverso”, demonstra o completo desconhecimento legal, hermenêutico, histórico e social. Tais atuações revelam o quanto o conceito do racismo, ainda precisa ser estudado, bem como as relações etnico raciais ainda precisam ser ensinadas, especialmente para branquitude que não admite as suas privações intelectuais e promove aberrações jurídicas e parlamentares, protagonizadas por representantes das instituições públicas, que ao invés de resguardar e cumprir as leis, violam e promovem retrocessos e inseguranças jurídicas.

Nesse sentido o professor doutor Adilson Moreira nos ensina que “O privilégio branco adquire status de funcionamento normal da sociedade quando o sistema jurídico deixa de reconhecer a forma como as estruturas de poder funcionam”. 

Além de todo o exposto, especificamente para o âmbito empresarial o Decreto nº 9571 de 21 de novembro de 2018 prevê as diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos, a norma prevê que as empresas devem:

 

  • Promover o acesso aos mecanismos de reparação e remediação para aqueles que, nesse âmbito, tenham seus direitos afetados.
  • Estimular a criação de medidas adicionais de proteção e a elaboração de matriz de priorização de reparações e indenizações para grupos em situação de vulnerabilidade.
  • Estimular a criação de medidas adicionais de proteção e a elaboração de matriz de priorização de reparações e indenizações para grupos em situação de vulnerabilidade. 
  • Promoção e apoio às medidas de inclusão e de não discriminação, com criação de programas de incentivos para contratação de grupos vulneráveis. 

 

A relação entre a interpretação do direito e o caso está evidente, após a exposição de todos os argumentos que devem embasar o entendimento do direito, tornou-se evidente que o defensor Jovino Bento Junior, responsável pelo ajuizamento da ação civil pública, em face à Magazine Luiza, não utilizou nenhum meio legítimo da ciência do direito.

Portanto, conforme Nota de Repúdio da Defensoria Geral da União, Nota Pública do Ministério Público do Trabalho, julgamentos do Supremo Tribunal Federal-STF e outras manifestações e estudos de juristas e intelectuais comprometidos com a acepção honesta, não há qualquer violação legal ou comportamento antijurídico na ação afirmativa promovida pela empresa Magazine Luiza, muito pelo contrário, há o cumprimento da função social e a demonstração de que a direção e gestão da organização estão alinhadas e aliadas ao antirracismo. 

 

Referências:

Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 – 1934]. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/8228>. Acesso em: 08 de outubro de 2020. 

Clube do Livro da Comissão de Graduação Pós Graduação e Pesquisa da OAB-SP. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oNjUy7Z8M5k>. Acesso em: 08 de outubro de 2020. 

Domingues, Heloisa Maria Bertol; Sá, Magali Romero; Clik Thomas. A recepção do Darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

Jacino, Ramatis. O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-abolição 1012/1920. São Paulo-SP: Editora Nefertiti, 2014.

Legislação Informatizada – LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989 – Veto.  Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1989/lei-7716-5-janeiro-1989-356354-veto-13022-pl.html>. Acesso em: 08 de outubro de 2020.

Lei nº 28. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Disponível em <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1884/lei-28-29.03.1884.html>. Acesso em: 08 de outubro de 2020.

Moreira, Adilson José. O que é discriminação?. Belo Horizonte-MG: Letramento, 2017.

Oliveira, Ricardo Mariz de; Schoueri, Luís Eduardo; Zilveti, Fernando Aurelio. REVISTA DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL. São Paulo – SP: Dialética, 2013.


¹Na Lei Provincial n. 28, de 28 de março de 1884, que abriu créditos financeiros para a introdução de imigrantes destinados à grande lavoura, constava um parágrafo que explicitava a obrigatoriedade da composição familiar. 

 ²O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-abolição 1012/1920, Ramatis Jacino, 2012.

 ³A recepção do darwinismo no Brasil. Domingues, Heloisa Maria Bertol; Sá, Magali Romero; Clik Thomas.

Anais da Constituinte, vol. VIII.

⁵<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1989/lei-7716-5-janeiro-1989-356354-veto-13022-pl.html>, acesso em: 08 de outubro de 2020.

 

Arquivo Pessoal

Autora:

Beatriz de Almeida

Advogada, consultora empresarial e professora. Pós graduanda em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do ABC – UFABC e em Compliance pela PUC MG.  Coordenadora na área de direito civil na Comissão de Graduação Pós Graduação e Pesquisa, Secretaria Geral na Comissão da Mulher Advogada e membro da Comissão de Igualdade Racial, todas da OAB SP. Articuladora social. Pesquisadora das relações étnico raciais da população negra brasileira.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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