A lixeira começa com um pedaço de papel! [PARTE I]

Tenho acompanhado com muita preocupação as letras das músicas de vários artistas angolanos, se considerarmos que a primeira bofetada ou o feminicídio (assassinato de mulheres) é precedido de várias sessões de tortura e ofensa psicológicas, então, concluo que a lixeira começa com um pedaço de papel, isto é, pequenas ações corriqueiras, porém carregadas de preconceitos que fomentam as desigualdades entre homens e mulheres, precisam ser denunciadas e banidas do contexto social.

por Florita Cuhanga António Telo via Guest Post para o Portal Geledés

Defini um “top desigualdade” para as músicas que irei analisar, a partir da avaliação dos seguintes itens:

i) Simplicidade na linguagem (de compreensão fácil até para uma criança);

ii) A notoriedade ou o sucesso que a música teve quando foi lançada. Na abordagem das músicas selecionadas, apresentarei primeiramente com o nome dos interpretes ou do grupo e o título da música, farei somente referência às passagens mais polêmicas, deixando o desafio ao leitor e leitora, caso ainda não o tenha feito, a ouvir as músicas, e agora com uma audição mais crítica considerando os pontos trazidos neste artigo.

Serão analisadas as seguintes letras: 1º Cabeça vazia do grupo Army Squad; 2º Ngaxe do cantor Cristo; 3º Amor no lugar errado de Anselmo Ralph e, 4º Vim devolver de Matias Damásio.

Army Squad

1º Grupo Army Squad – Cabeça vazia

Esta certamente foi uma das maiores composições machistas e sexistas, daí ela estar em primeiro lugar no top, quer seja em termos de letra como de impacto para o público alvo. A música fez bastante sucesso, tendo concorrido inclusive a diversos concursos musicais de referência em Angola.

[…] Peguei nas chaves do carro do meu father /Dei adeus a mãe e disse vou buscar o brother/ No caminho ainda estava na Vila Alice /Vi uma dama bwé boa com o andar de uma miss/ Hum/ Nigga é verdade, a dama veio de Espanha/ Eu imaginava lhe pitar tipo lasanha/Negra, bonita a pele de castel/ A dama era suave e estava a usar cacherel/ O meu olhar nigga estava muito intenso /Vou sair do carro só pra ver se me convenço/ E a dama tipo deu conta do meu olhar/ Deu-me um toque com os olhos sei que ela estava a me chamar/ Eu já a pensar que a dama curitu do meu stice

Saí do carro a primeira coisa que ela me disse foi:/ Moço me paga lá um churra/ Eu disse: what? Eheh/ Essa dama é muito burra […]

Deste verso identifiquei vários preconceitos associados às mulheres, nomeadamente, a utilização do padrão de beleza estético ocidental, onde a mulher bonita precisa ter o “andar de uma miss”, sem deixar de frisar os detalhes nas roupas que a moça usava, denotando um maior cuidado com aparência, imagem muito presente na sociedade angolana, ou seja, mulheres devem ser mais cuidadas para que possam chamar a atenção do macho-alfa.[1]

Outro estereotipo de gênero muito comum em Angola é o da comparação da mulher à comida, por isso ele imaginou a “lhe pitar tipo lasanha”, em português corrente, “a comê-la como se fosse a uma lasanha”. A objetificação da mulher, comparando seu corpo à comida demonstra a falta de consideração a ela, enquanto pessoa, sujeito de direitos, que na mente dos homens, passa a reduzir-se a um petisco, um prato de comida, a espera de ser degustado. Portanto, mulheres são coisas que vivem para serem usadas.

Interessante como a memória coletiva angolana acredita que toda a mulher que olhe para um rapaz deseja-o, não que às vezes assim não aconteça, mas convenhamos que para os homens, isso nunca acontece. Então, quando a mulher olha para o sexo oposto, ela está a fazer sinal, deseja sexualmente este homem e, neste sentido, o macho-alfa precisa exercer o seu papel e, atacar a presa. Assustadoramente, este tipo de atitude pode ser apontado como um dos fundamentos para o estupro/violação sexual para contextos como o angolano.

A famosa frase masculina “o não da mulher, é sim”, querendo significar que quando a mulher diz que não quer ter relações sexuais com determinado homem, na verdade ela quer, leva a que muitas mulheres sejam não só fisicamente, mas também psicologicamente forçadas a terem relações sexuais. Este tópico faz-me lembrar uma mensagem que recebi uma vez um colega de trabalho, não tão meu amigo, foi no dia 1 de Abril, “comemorado” como o dia das mentiras, lembro perfeitamente do conteúdo da mensagem, porque até hoje ainda me provoca arrepios: “feliz dia do vou tirar se doer”. Contextualizando a frase, as mulheres podem estar desconfortáveis ou sentirem dor durante uma relação sexual consensual, por diversos fatores de seus corpos, que não cabe aqui dissertar, mas o que vale mesmo ressaltar é o fato de que muitos homens, por diversas vezes, têm relações sexuais, inclusive com as suas companheiras/namoradas/esposas, mesmo quando elas não querem, ou seja, prometer que vai parar se estiver a doer, é uma mentira redonda, como se diz na gíria.

E para fechar com chave de ouro, depois desse assedio todo, “essa dama é muito burra”. Vejamos, ele esteve o tempo todo a reparar nas características físicas da moça, com o seu olhar, talvez gestos sinalizando suas intenções, chega até ela e espera que ela tenha uma conversa sobre o posicionamento dos planetas no sistema solar! Como disse muito bem outra cantora, em sábia resposta a essa música – terei oportunidade de escrever sobre esta resposta- “como é queres que demonstre minha inteligência, se o seu olhar esta focado no meu balançar [no balançar da minha bunda]”. Poderíamos tecer mais considerações a esta música, como por exemplo, o fato do refrão colocar a mulher como objeto sexual que “excita com o seu balançar”, porque toda ela é violenta, as ataca em todas as suas dimensões e reforça estereótipos de gênero já existentes na sociedade angolana, nomeadamente dela como objeto sexual e ao serviço e a disposição do homem e das relações heterossexuais.

2º Cantor Cristo – Ngaxi

Esta e a primeira estavam empatadas na posição cimeira, mas como precisava eleger somente uma para o primeiro lugar, priorizei a música Cabeça Vazia principalmente por seu lançamento ser anterior a esta música. Por isso, as considerações são semelhantes, o trato da figura da mulher como objeto completamente desprovido do seu lado humano, salvo quando exerça o seu papel sexual de dar prazer ao homem. Quando tal acontece, esse trato é de arrepiar, não só a elas, que são as principais ofendidas, mas de qualquer pessoa sensata, em uso perfeito de suas faculdades mentais.

Resumidamente, a música conta a história de uma jovem angolana que emigrou para Portugal pelo fato de ter ganhado um concurso de miss. Voltando a Angola, ela resolve “não escutar mais conselhos”, e no refrão o cantor diz: “Ngaxe wa kodywa, chaparia por fora esta bala, mas motor esta babar óleo”. Ao longo de toda a interpretação, são exaltadas as qualidades físicas da Ngaxe.

A esta altura, as minhas leitoras e leitores, já devem ter se dado conta, que em Angola as comparações feitas com a mulher são as mais esdrúxulas possíveis, desde lasanhas a carros em estado deteriorado. Desde a primeira vez que ouvi essa música, me choquei, e ainda me choco, com a forma irresponsável com que o autor trata uma pessoa do sexo feminino, e também, ainda me questiono: o que seria esse motor? E o que seria babar óleo? Afinal, motor a babar óleo é a comparação mais acertada para se referir a uma pessoa? A um ser humano? Em meu entender, o motor que baba óleo esta diretamente ligada à questão sexual, como aquela mulher que por ter se relacionado com vários homens tornou-se “imprópria para se ter relações”. É a velha ideia de que homens podem se relacionar com várias mulheres e permanecem “em dia” e as mulheres não, pois, sexualmente falando, elas se deterioram.

Chego à conclusão que só podemos estar todas e todos doentes, quando assumimos que barbaridades como estas, são “normais”. Não minha gente, permita-me que o diga: isso não é normal! Este tipo de linguagem, ao contrário do que se pensa, não fica somente pela personagem da Ngaxe, ela se estende a todas as mulheres, sim, todas as mulheres, quer se encontrem ou não em uma situação de vulnerabilidade. Aliás, a música sequer esta preocupada em explorar melhor o uso do corpo da mulher por parte da indústria de moda, por exemplo, a forma como ela acaba com a vida das mulheres, transformando-as em seres debilitados, física e psicologicamente. Como a maioria das pessoas, ele apenas esta preocupado em atirar pedras, pelas escolhas muitas vezes compelidas, que as mulheres em Angola são obrigadas a fazer.

Uma menina pobre, sem perspectivas na vida, num contexto de abandono que o país se encontra desde a independência e onde as mulheres têm sido as mais sacrificadas. As suas escolhas são resultado de uma sociedade que ainda nos trata da pior forma possível, basta olhar para os indicadores sociais que demonstram sem margem para erro a feminização da pobreza em Angola.

Independentemente disso, homens e mulheres são livres – ou deveriam ser – de fazerem as suas opções em relação às estratégias de sobrevivência e arcarem com as implicações, porém, sem falsos moralismos, ou lições de moral escondidas por trás de um manto de patriarcado e sexismo.

E reafirmo que a personagem Ngaxe não ficou somente no contexto musical, ela ganhou vida e foi personificada em todas as mulheres, de tal forma que ainda hoje se escuta alguns homens em Luanda chamarem às mulheres Ngaxe referindo-se a personagem, quer seja porque elas não responderam positivamente as suas agressões verbais usualmente chamadas de “cantadas”, por não estarem dentro do padrão de beleza ocidental, por quebrarem as regras da heterossexualidade compulsória ou simplesmente por serem mulheres, tal como a Ngaxe.

Mulheres são seres humanos com direitos e deveres iguais aos homens, conforme reza a constituição Angolana de 2010. Elas não são objeto, nem carro, não têm motor e não babam óleo. Fim de conversa!

3º Anselmo Ralph – Amor no Lugar Errado

Esta música faz parte do primeiro disco do cantor, que fez muito sucesso e o catapultou para grandes palcos. No início da música, uma pessoa faz uma ligação para o cantor e conta a história de uma moça que sofre maus tratos por parte de um homem:

 

“comé Anselmo tenho uma dica para falar contigo, estas a ver aquela minha vizinha, ela tem de tudo que um homem precisa, sabe cozinhar, sabe engomar, tratar da casa, é uma miúda prendada, mas ela esta com homem que só lhe maltrata e ainda por cima anda com as primas delas, mas para lhe abrir olhos faz ai um bit […]”.

 

Se estivesse a usar as redes sociais eu com certeza utilizaria aquele bonequinho que fica boquiaberto de susto, porque isso é altamente aterrorizante. Primeiro ele liga para o amigo pedindo ajuda para “resgatar” a vizinha da situação aflitiva que vive, até aqui, tudo muito bonitinho, como diz uma amiga minha, mas será que é só ela que precisa de ajuda ou ser chamada atenção? Será que ele enquanto homem não poderia intervir nesta situação, chamando a atenção do jovem faltador, como se diz em Angola? Afinal, para além de ser violento (falarei disso mais adiante), ainda tinha várias parceiras. Não, claro que não poderia ser assim, mulheres são seres indefesos, incapazes de pensar por si mesmas, precisam sempre de um macho-alfa que as proteja, ou melhor, alguém abra os seus olhos, que cuide delas, que tome as decisões por elas.

Mas cá entre nós: será que não é opção dela, livre e esclarecida estar com este homem? Sem querer legitimar qualquer tipo de situação de possível violência, mas esta é uma probabilidade que pode também ser pensada neste caso, afinal, ela pensa, pois não? Sendo adulta, tem capacidade de medir os seus próprios atos e fazer as escolhas. E se ela tiver um relacionamento aberto? É cada dia mais comum, pese embora meus receios nos relacionamentos abertos heterossexuais, em que geral é aberto somente para o homem. Mas não podia ser nenhuma destas hipóteses, porque ela é uma mulher, pobrezinha, vulnerável, eu diria mesmo, coitadinha e ainda por cima cega. Meus caros acreditem, nós não somos cegas nem coitadinhas!

Em segundo, ela é uma mulher prendada! Se fosse num filme eu iria dizer rebobina, ou melhor, recua, acho que não ouvi bem, ele disse prendada? Sim, isso mesmo. Eu confesso que nem minha mãe, no auge dos seus mais de cinquenta, ainda pegou a era desta expressão, mas vamos lá saber, o que seria isso, afinal, a música explica perfeitamente.

Mulher prendada, minhas caras leitoras e leitores, segundo a música, nada mais é do que, aquela que sabe cozinhar, engomar, tratar da casa. Sim, isso mesmo que você acabou de ler, por outras palavras, o que hodiernamente chamam de…SERVIÇAL. Pois se assim não fosse, na minha não tão pequena cabeça, sentido algum faria. Pensem comigo, uma mulher que sabe fazer todas as tarefas domésticas, e faz muito bem, pelo que a música sugere, só pode ser uma empregada doméstica, com todo o respeito e admiração que tenho pelas empregadas domésticas, ainda injustamente tratadas em nossa sociedade. Mas infelizmente para a música e principalmente para a realidade angolana, NÃO. Trata-se de uma mulher com as qualidades perfeitas para ser uma esposa, com “tudo que um homem precisa”.

Casamento e aptidão para executar tarefas domésticas são duas realidades que para mim não fazem parte da mesma moeda, mais ainda porque eu sou adepta ao compartilhamento das tarefas domésticas. Afinal, com qual conceito de casamento estamos a trabalhar? Pensemos no legal, em que o casamento é definido como uma união consensual entre duas pessoas de diferentes sexos (não poderia deixar de lado essa última parte). Ou ainda num conceito religioso, para as pessoas que o são, como um vínculo matrimonial que une duas pessoas, que podem ou não ser do mesmo sexo. E igualmente, um conceito mais tradicional, em que este vínculo une não somente o casal, mas também encerram laços fortes entre ambas as famílias. Em todos estes conceitos básicos, dois fatores são preponderantes: que haja liberdade de contrair o matrimonio religioso ou tradicional e que entre o casal haja o mínimo de amor, ou como cada uma/ um quiser chamar-lhe.

Recorrer a dotes culinários para definir com quem se casar é extremamente machista e sexista, pois fundamenta a ideia de que as mulheres devem sempre servir aos homens, na mesa e na cama.

Aqui é importante referir as teorias descabidas de muitos angolanos de que as mulheres nascem naturalmente aptas a exercer trabalhos domésticos assim como a maternidade. Vou deixar esse último tema para outro artigo, mas a ideia desta naturalidade é tão forte e presente na nossa sociedade, que não distingue raça, sexo, condição social ou habilitações literárias. Pessoalmente fiquei chocadíssima um dia desses, quando que fui almoçar com um “amigo” (entre aspas, porque depois desse almoço nossa relação nunca mais foi à mesma), por sinal acadêmica e profissionalmente bem posicionado, afirmava com toda a “razão do mundo”, que tais situações acima mencionadas, eram naturais, ou seja, as mulheres já nasciam com esta “benção”.

Caras leitoras e leitores, natural nesta vida, e também já começa a ser discutível, é rir, chorar, desejo, dormir, e outras necessidades fisiológicas. O resto são construções sociais resultado de um processo educacional que envolve não só a escola formal, mas principalmente a informal e a não formal incluindo aqui a influência das nossas amizades.

Atualmente, algumas mulheres executam melhor as tarefas domésticas porque desde pequenas eram elas quem iam para a cozinha, enquanto os rapazes deitavam o lixo, enchiam as garrafas quando não estivessem a jogar bola. O que tem de natural neste processo? NADA, absolutamente nada. Somente a reprodução de uma educação endocêntrica que define papéis para nós de acordo ao sexo. Desde que nascemos somos marcadas/os: se tem um pénis vai ser astronauta e se tem uma vagina vai ser esposa-empregada (como reforça a letra da música em questão), fim de conversa!

Tirando o oportunismo e privilégios que esta situação trás para o macho-alfa, a domesticidade acaba com a saúde física e emocional das mulheres angolanas, principalmente para aquelas que também trabalham fora de casa, configurando a chamada jornada quádrupla (casa, filhos, marido e trabalho).   Assim, muitos casais heterossexuais se unem por todos os motivos, exceto aqueles pelos quais realmente deveriam fazê-lo – realização de um projeto comum, respeito, carinho, solidariedade, partilha, etc.

Finalmente, quanto ao episódio do homem maltratar a vizinha, só posso dizer: vai a policia meu caro, apresenta uma queixa, em Angola violência é crime, não importa de que ordem for. E a lei contra a violência doméstica criminaliza várias ações e omissões que fere física, psicológica ou sexualmente a mulher. A letra seria mais útil se chamasse atenção para situação desta forma. Mas quem falou que ela tinha essa pretensão!

 

Continua…

 

*Nota: O original deste artigo foi publicado no Jornal independente produzido e distribuído a partir de Luanda, denominado Terra Angolana, de 14 de Agosto de 2015, edição 75.


 

[1] Ao longo do texto eu uso o termo macho-alfa para estabelecer um paralelo com o mundo animal, que distingue macho e fêmea muitas vezes equiparando as relações de género, entre homem e mulher. Macho alpha ou macho alfa é uma expressão do ramo da zoologia, usada para descrever um elemento de um grupo de animais que apresenta características dominantes, sendo o chefe desse grupo. No mundo dos animais irracionais, um macho alpha assume o topo da hierarquia dentro da sua comunidade, tendo vários privilégios, como acesso prioritário à comida. Além disso, também pode escolher as fêmeas com as quais vai se reproduzir. Um macho alpha reforça a sua autoridade através da intimidação, envolvendo-se várias vezes em confrontos físicos. Definição resumida do link: ˂http://www.significados.com.br/macho-alpha/˃. Acesso em: 05 de agos. 2015.

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