A mestiçagem não explica tudo! Existências e conexões afroindígenas no Brasil

FONTEPor Benedito Emílio da Silva Ribeiro, eviado para o Portal Geleldés

Em 23 de abril de 1951, o laureado antropólogo Darcy Ribeiro – à época funcionário do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – realizou uma conferência intitulada “Pesquisas Etnológicas no Brasil” no auditório do Ministério da Agricultura, numa comemoração ao Dia do Índio. Na ocasião, ele apresentou um breve apanhado das ações desenvolvidas pela Seção de Estudos – braço científico do SPI – desde 1942 e ressaltou a importância da aliança entre Ciências Sociais e administração pública para a compreensão do “problema indígena” no país e a busca de soluções eficientes para contorná-lo.

Para além de nossas expectativas iniciais, o antropólogo não se restringe à imagem convencional dos indígenas e nos coloca diante de experiências que remetem a conexões estabelecidas com africanos e seus descendentes em diferentes momentos e territórios brasileiros, embora o faça de uma maneira que mereça o nosso questionamento e crítica. Sobretudo quando o interesse se volta ao reconhecimento dos sentidos atribuídos por indivíduos e grupos negros e indígenas a respeito de seus modos de vida e construções sociais.

Darcy Ribeiro começa narrando sobre as expedições para o registro foto-cinematográfico dos povos indígenas do alto Xingu (Kamaiurá, Mehinako, Nahukuá, Kuikuro, Trumai, Aweti, Wauja e Yawalapiti), bem como para os estudos antropológicos e etno-linguísticos desenvolvidos com alguns grupos “remanescentes” como os Fulni-ô, Kadiwéu, Maxakali e Ofaié. Após esse panorama, ele se dedica a falar sobre as incursões de pesquisa etnológica que realizou com o linguista Max Boudin e o cinematógrafo Heinz Forthmann no médio e alto rio Gurupi, de novembro de 1949 e maio de 1950, entre os indígenas Ka’apor.

Aqui, é perceptível a elaboração de uma narrativa-memória heroica sobre o trabalho realizado entre os indígenas do Gurupi. Num esforço desbravador, os três funcionários percorreram essa longínqua região de sertão/fronteira na Amazônia e buscaram efetuar novos contatos pacíficos com os Ka’apor, a fim de aproximá-los cada vez mais da sociedade brasileira e de seus ideais de nacionalidade e civilização. Ou seja, exaltava-se o que era entendido como “ímpeto humanístico” dos agentes do SPI, ao enfrentarem grandes distâncias e toda sorte de adversidades para cumprir seu trabalho de “proteger e assistir” os indígenas brasileiros.

Uma bandeira ideológica era levantada: a missão do SPI em estudar aqueles “selvícolas” em suas aldeias distantes e, ao mesmo tempo, promover o assistencialismo tutelar como mote paternalista das políticas do Estado direcionadas aos povos originários. Assim, a notícia principal nessa conferência era dos feitos do SPI até aquele ano. A realidade dos indígenas e a grandeza de suas culturas e historicidades eram deixados de lado, figurando muito mais como mera curiosidade antropológica, um apêndice da ação indigenista. Não se pode perder de vista o fato de que coube se promover esse enquadramento em plena “Semana do Índio” de 1951!

Não sendo isso o bastante, Darcy Ribeiro dá mais detalhes acerca dessa expedição “ambiciosa” ao Gurupi, na qual se efetuou estudos aprofundados sobre a língua, costumes e modo de vida dos Ka’apor, principal grupo daquela região da Amazônia. Esses, segundo a percepção do antropólogo, seriam indígenas que “falam um dialeto Tupi” e “conservam praticamente toda a sua cultura”, mesmo após maiores contatos com o SPI. Vale destacar que os Ka’apor, naquela época, eram conhecidos pelo etnônimo pejorativo de “Urubus” e identificados como indígenas selvagens e, portanto, “mais puros”.

Indígenas Ka’apor. Terra Indígena Alto Turiaçu (MA), 30 de abril de 2021. Fonte: Twitter – @luis__pedrosa.

Além dos estudos sobre os Ka’apor, Darcy Ribeiro também comunicou pequenos apontamentos sobre outros dois povos indígenas ali localizados – os Tenetehar-Tembé e os Timbira. E trouxe ainda informações sobre alguns grupos locais com os quais teve contato durante sua viagem, sobretudo as comunidades negras de Itamoari e Camiranga. Segundo ele: “Aí vivem hoje os remanescentes dos quilombos maranhenses reunidos depois da libertação da escravatura”. A partir daqui, o que nos chama a atenção é o enquadramento dado por Darcy Ribeiro ao cenário interétnico no rio Gurupi e as evidências sobre as conexões afroindígenas na região, as quais foram interpretadas a partir dos rótulos da mestiçagem e dos processos de amálgama cultural.

Segundo observou o antropólogo, tanto os brancos quanto os negros e caboclos da região absorveram elementos culturais indígenas (Tembé, Ka’apor e Timbira) e compartilhavam muitos traços culturalmente constitutivos com estes povos originários. Isso fazia-os se aproximarem dos “selvícolas” e, na leitura essencialista dele, perder certos sinais de distinção da sua identidade sociocultural, sobretudo entre os negros quilombolas. Em suas próprias palavras: “quase só a cor da pele os identifica como negros, porque são em tudo o mais como os caboclos do Gurupi”. Ou mais: “Em lugar de macumbas ou candomblés e pais de santo deparamos com pajelanças em que pajés negros cantam e invocam, ao ritmo do maracá, crenças bem aborígenes”. Dito de outra forma, aqueles negros tendiam a uma “reversa” aculturação e sincretismo que o surpreendeu.

Logo, nesta narrativa para a conferência e em outros documentos sobre suas viagens de campo ao Gurupi, Darcy Ribeiro corroborava uma visão estruturante sobre os tipos de relação possíveis entre indígenas e a sociedade imaginada como nacional naquele contexto do século XX, situando também o lugar dos negros nesse processo. Aqui, percebemos uma orientação específica de como as comunidades indígenas, negras e caboclas/mestiças, nesse espaço de sertão-fronteira, deveriam encaixar-se harmonicamente numa hierarquia evolutiva que tendia a seguir formas estáticas de organização das sociabilidades e convivências culturais, as quais seriam mediadas pelo Estado-nação através do SPI.

Esperava-se das pessoas observadas esse mesmo essencialismo acerca de elementos imutáveis e caracterizantes daqueles grupos, usando isso como definidor central da identidade sociocultural e racial deles. Logo, se os coletivos se afastassem daquele padrão pré-estabelecido pelo Outro – leia-se o homem branco –, perdendo sua “pureza” indígena ou negra/africana, passariam a ser classificados como “misturados” e  inseridos numa outra posição que se alinhava aos sentidos da identidade nacional e as estratégias estatais de homogeneização e apagamento das diferenças. É nessa perspectiva que funcionam bem termos como pardo, moreno, caboclo, tapuia, ribeirinho, caipira, sertanejo e outras categorias de classificação e agrupamento populacional.

Por exemplo, o termo caboclo. Na Amazônia, é usado numa tentativa de aproximação com o “branco” pela mestiçagem, do ponto de vista biológico e subjetivo (pensamento), colocando-se num entrelugar de indefinições que é colonizado pelo ideal de branquitude e provoca um esvaziamento da dimensão étnico-racial daqueles sujeitos. Da mesma forma, aqueles outros termos também engessam uma diversidade de experiências socioculturais, criando rótulos e estereótipos. Atualmente, muitos desses sujeitos têm efetuado verdadeiras viagens de volta para se reconectar com suas ancestralidades e se entender individual e coletivamente desde seu lugar étnico-racial, o qual foi interditado pelo projeto de branqueamento.

Outro aspecto diz respeito aos elementos de racialização direcionados aos indígenas como um sinal dessa mestiçagem observada nos sertões do Gurupi, ao mesmo tempo em que imputa certo juízo de valor sobre tais “misturas”. Isso fica mais evidenciado nos Diários Índios, livro de Darcy Ribeiro sobre suas experiências etnográficas entre os Ka’apor, organizado a partir de suas anotações de campo, entre 1949 e 1951, e publicado no ano de 1996. Nele, o antropólogo dedicou algumas passagens do texto para explanar questões sobre coexistência, aculturação, mestiçagem, raça etc., observáveis na região entre os Ka’apor.

Em um dos trechos da obra, Darcy Ribeiro citou curiosamente a existência de “Urubus brancos” e “Urubus negros”, como forma de estabelecer uma tipologia daqueles indígenas com base nessa perspectiva racial. Enquanto os Ka’apor “brancos” eram mais amistosos e buscavam contato pacífico com a civilização através do SPI, sendo classificados como “indígenas verdadeiros”; os Ka’apor “negros” eram tomados como incorrigíveis selvagens que negavam o pacifismo estatal e impunham ataques aguerridos na região, instaurando uma atmosfera de medo na população local e provocando retrocessos às políticas indigenistas do SPI.

Sobre essa percepção racial dos Ka’apor, Darcy Ribeiro escreveu o seguinte no Diários Índios: “Mas a alcunha de ‘negros’ e a cor mais escura, bem como os cabelos menos lisos daquele grupo (segundo o informante), sugerem que eles tenham tido contato com os negros mocambeiros da região. Nesse caso, à hostilidade tradicional dos Urubus se teria juntado a repulsa do negro escravo, ou seu descendente, para com o branco”. Novamente, assinalava a degeneração dessa relação entre indígenas e negros/as, cujos cruzamentos “indevidos” somente prejudicavam os processos de integração empreendidos pelo SPI sobre os primeiros, nos termos da tutela.

Esse aspecto, no entanto, não era uma novidade informada por Darcy Ribeiro nos anos 1950. Décadas antes, o jornal carioca Correio da Manhã dedicou uma chamativa matéria sobre os Ka’apor em 1928, mobilizando a atenção para a origem daqueles “índios pretos”, decorrente da mistura entre indígenas e negros fugitivos da região. O texto ainda se dedica a informar sobre a situação dos indígenas em face de ataques e invasões de “civilizados”; e criticar as ações do Serviço de Profilaxia Rural do Pará. O jornal sinalizava como as condições de vivência naquela fronteira direcionaram os negros e Ka’apor para esses “casamentos” interétnicos (e inter-raciais).

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1928, p. 5. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Os “selvícolas pretos” noticiados no Correio da Manhã, e outras informações da mesma natureza que circulavam pela capital federal, evidenciavam uma pequena fração rotulável da realidade sociocultural do Brasil: de diferentes contatos, trânsitos e existências étnico-raciais. De indígenas em comunidades negras/quilombolas e vice-versa, compartilhando vivências, saberes e práticas. Na região do Gurupi, essa encruzilhada afroindígena vem desde longa data.

O rio Gurupi demarca a divisa entre os estados do Pará e do Maranhão desde 1852. Nessa região ampliada de fronteira interna, que se expande de um lado para o alto rio Guamá (PA) e do outro para o rio Turiaçu (MA), inúmeros fluxos populacionais, estruturas de organização política e vivências socioculturais se articularam com territórios e territorialidades em interseção. Afinal, temos ali inúmeros rios, igarapés e espaços de floresta que foram profundamente indianizados e enegrecidos ao longo do tempo, potencializando um “laboratório” para a construção coletiva de liberdades e autonomias entre pessoas negras e indígenas, enquanto alternativas possíveis às convenções sociais e sistemas de repressão e subalternização.

Desde os tempos coloniais, essa grande zona entre o Pará e o Maranhão e suas gentes escapavam dos ditames oficiais do Estado e suas táticas de controle, revelando um histórico diversificado de conexões entre comunidades indígenas, negras e mestiças que ali se assentaram e/ou que estavam em constante circulação por aquelas terras. E justamente foram as articulações entre indígenas e negros/as, e seus cruzos de (co)existência, que Darcy Ribeiro observou nesta região e as traduziu segundo os arranjos próprios em torno da mestiçagem e aculturação, sem atentar-se necessariamente às experiências diversas elaboradas por aqueles indivíduos e suas estratégias de liberdade e autonomia para além das ações coercitivas e integracionistas impostas pelo Estado.

A percepção do antropólogo engessava a realidade etnológica e os fluxos históricos envolvendo aquelas populações em contato. Pois nos meandros da História, as culturas não se mantêm estáticas, como um resíduo imutável das sociedades, dentro de um primitivismo inocente que lhes garante legitimidade aos olhos do Outro-branco. Como observou Roy Wagner, as culturas se transformam no decorrer do tempo e, com criatividade, são inventadas e reinventadas nessa relação dinâmica entre sujeitos e/ou grupos sociais e suas bagagens culturais. E sendo a fronteira uma encruzilhada, os caminhos percorridos por gente negra e indígena revelam toda a beleza e potência inventiva dessas pessoas para (re)organizar suas vidas e criar novas experiências.

Basta focalizarmos casos como o de Dona Petronilia (a vó Pituca), negra-índia do Quilombo de Itamoari, cuja trajetória sinaliza para as ancestralidades afroindígenas na região e uma dupla afirmação possível da comunidade, condizente às experiências de vida daquelas pessoas. Ou ainda de indígenas Tembé das aldeias do Guamá e seu passado de ligações afroindígenas, cujas referências se espelham em algumas práticas diferenciadas de pajelança, por exemplo, que são vistas pela comunidade como tradicionalmente indígenas.

Essas histórias e saberes diversos têm sido compilados, numa parceria ativa com as respectivas comunidades, em cartilhas paradidáticas produzidas pela Universidade Federal do Pará/Campus Bragança, através da atuação do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão (GEIPAM). Tais cartilhas, que em breve estarão disponíveis no site do grupo, buscam levar às escolas da região esses conhecimentos locais, narrados pelos indígenas e quilombolas, de modo a oferecer conteúdos mais próximos da realidade sociocultural dos/as estudantes em sala de aula.

Cartilhas paradidáticas da série “Saberes e Patrimônios Culturais da Amazônia”, Belém, 27 de janeiro de 2021. Fonte: site Agência Pará.

Essas trajetórias plurais entrelaçam-se nos diversos tempos e espaços, constituindo um mosaico de existências possíveis. E evidenciam a amplitude da diversidade sociocultural na Amazônia, em particular, e no Brasil, em geral, a partir das experiências de contato interétnico e de modulação dessas diferenças. Assim, aqueles sujeitos gestaram modos autônomos de vida comunitária, territorialidades diversas e redes expandidas de parentesco-aliança que não se reduziam aos signos da aculturação, mestiçagem e/ou sincretismos impostos pela branquitude. Possibilidades de existência e afirmação simultânea (negra, indígena e/ou afroindígena) que não precisam ser lidas, necessariamente, através do esvaziamento ou perda de referências “originais”.

Para concluir… Ao problematizar aquele discurso para a “Semana do Índio” de 1951, focalizamos outras possibilidades de leitura que as nossas histórias já evidenciam. Narrativas de (re)existência que dimensionam as conexões afroindígenas e suas dinâmicas que fornecem outras interpretações sobre o nosso passado e auxiliam num entendimento renovado da nossa sociedade atual. A mestiçagem pode até ter vingado, mas ela não dá conta de explicar tudo, todas as nossas histórias e as experiências articuladas entre gerações de gente negra e indígena! Assim, em plena Semana dos Povos Indígenas, buscamos situar melhor os agenciamentos dessas – e entre essas – populações na luta por direitos, autonomia e reconhecimento ao longo da História do Brasil.

Assista ao vídeo do historiador Benedito Emílio da Silva Ribeiro no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI07 (9º ano: Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes); EF09HI08 (9º ano: Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas). EF09HI36 (9º ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precárias desses grupos na ordem econômica atual).


Benedito Emílio da Silva RibeiroMestrando em Diversidade Sociocultural pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão da Universidade Federal do Pará – Campus Bragança (GEIPAM – UFPA/Bragança). E-mail: emiliosilvaribeiro20@gmail.com; Instagram: @emilioribeiro95.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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