A mulher negra no mercado de trabalho – por Beatriz Nascimento

Para entender a situação da mulher negra no mercado de trabalho, acho necessário voltarmos um pouco no tempo, estabelecendo um pequeno histórico da sociedade brasileira no que concerne à sua estrutura. Da maneira como estava estruturada essa sociedade na época colonial ela surge como extremamente hierarquizada, podendo-se conceituar como de castas, na qual os diversos grupos desempenham papéis rigidamente diferenciados.

Foto: Reprodução

Publicado originalmente no jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 25 de julho de 1976.

 

Num dos polos desta hierarquia social encontramos o senhor de terras, que concentra em suas mãos o poder econômico e político; no outro polo, os escravos, a força de trabalho efetiva desta sociedade. Entre estes dois polos encontramos uma camada de homens e mulheres livres, vivendo em condições precárias, sem meios de vida. Por estar assim definida, a sociedade colonial se reveste de um caráter patriarcal que permeia toda sua estrutura, refletindo-se de maneira extrema sobre a mulher.

Devido ao caráter patriarcal e paternalista, atribui-se à mulher branca o papel de esposa do homem, mãe dos seus filhos e dedicada a eles. Deste modo seu papel é assinalado pelo ócio, sendo amada, respeitada e idealizada naquilo que este ócio lhe representava como suporte ideológico de uma sociedade baseada na exploração do trabalho [e da pessoa] de uma grande camada da população.

Contrariamente à mulher branca, sua correspondente no outro polo, a mulher negra, pode ser considerada como uma mulher essencialmente produtora, com um papel semelhante ao do seu homem, isto é, como tendo um papel ativo. Antes de mais nada, como escrava, ela é uma trabalhadora, não só nos afazeres da casa grande (atividade que não se limita somente a satisfazer os mimos dos senhores, senhoras e seus filhos, mas como produtora de alimentos para a escravaria) como também no campo, nas atividades subsidiárias do corte e do engenho. Por outro lado, além da sua capacidade produtiva, pela sua condição de mulher, e, portanto, mãe em potencial de novos escravos, dava-lhe a função de reprodutora de nova mercadoria, para o mercado de mão-de-obra interno. Isto é, a mulher negra é uma fornecedora de mão-de-obra em potencial, concorrendo com o tráfico negreiro.

Não quero dizer com esta última afirmativa, que o crescimento vegetativo da população escrava no Brasil tenha sido positivo. Comparando aos Estados Unidos, onde a população escrava tinha um alto crescimento vegetativo, o balanço entre natalidade e mortalidade dos crioulos no Brasil foi desfavorável. Basta para ilustrar dizer que, após a cessação do tráfico nos Estados Unidos, em 1808, até a Guerra de Secessão, a população negra escrava quase triplicou. Enquanto no Brasil, com o tráfico aberto, não aumenta o número de escravos, ficando em torno de um milhão e meio no mesmo período. De qualquer jeito é importante chamar a atenção desta “capacidade reprodutiva” da mulher negra, que a faz revestir de uma tradição como elemento produtor neste período da história do Brasil sendo, junto com o seu correspondente masculino, o suporte para a instituição escravocrata. Ressalte-se, entretanto, que, justamente por isso, recai sobre ela o peso da denominação senhorial.

A moderna sociedade brasileira apresenta um maior dinamismo no que concerne à diversificação das atividades produtivas, trazido a efeito com o processo de industrialização demarcado no período de 1930. Com a expansão industrial e do setor de serviços, a estratificação social, profundamente polarizada nos períodos anteriores, apresenta uma maior flexibilidade e gradação. No entanto, esta maior flexibilidade mantém muito profundamente as diferenças de papéis atribuídos aos diversos grupos da sociedade. Diversos fatores funcionam como causa para que se perpetuem estas diferenças. Um deles, como não poderia deixar de ser, numa sociedade constituída de diferentes grupos étnicos, é o fator racial.

Numa sociedade como a nossa, onde a dinâmica do sistema econômico estabelece espaços na hierarquia de classes, existem alguns mecanismos para selecionar as pessoas que irão preencher estes espaços.

O critério racial constitui-se num desses mecanismos de seleção, fazendo com que as pessoas negras sejam relegadas aos lugares mais baixos da hierarquia, através da discriminação. O efeito continuado da discriminação feita pelo branco tem também como consequência a internalização pelo grupo negro dos lugares inferiores que lhes são atribuídos. Assim, os negros ocupam aqueles lugares na hierarquia social, desobrigando-se de penetrar os espaços que estão designados para os grupos de cor mais clara. Dialeticamente perpetuando o processo de domínio social e privilégio racial.

A mulher negra, elemento no qual se cristaliza mais a estrutura de dominação, como negra e como mulher, se vê, deste modo, ocupando os espaços e os papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão. A “herança escravocrata” sofre uma continuidade no que diz respeito à mulher negra. Seu papel como trabalhadora, a grosso modo, não muda muito. As sobrevivências patriarcais na sociedade brasileira fazem com que ela seja recrutada e assuma empregos domésticos, em menor grau na indústria de transformação, nas áreas urbanas e que permaneça como trabalhadora nas rurais. Podemos acrescentar, no entanto, ao que expusemos aci­ma que a estas sobrevivências ou resíduos do escravagismo, se superpõem os mecanismos atuais de manutenção de privilégios por parte do grupo dominante. Mecanismos que são essencialmente ideológicos e que ao se debruçarem sobre as condições objetivas da sociedade têm efeitos discriminatórios. Se a mulher negra hoje permanece ocupando empregos similares aos que ocupava na sociedade colonial, é tanto devido ao fato de ser uma mulher de raça ne­gra, como por terem sido escravos seus antepassados.

Numa sociedade como a nossa, onde convivem elementos arcaicos com o processo de modernização, a educação representa um fator de pressão dos grupos subordinados, visando melhores condições de vida e ascensão social. Entretanto, justamente por causa daqueles elementos arcaicos, os avanços educacionais são limitados e recentes, ao mesmo tempo [em] que carente, pois a maior parte da população tem tido pouco acesso efetivo ao processo educacional. Entretanto pesquisas recentes baseadas nos recenseamentos de 1940, 1950 e 1970, registram que a mulher branca conseguiu maior acesso ao curso superior, diminuindo proporcionalmente a desigualdade entre ela e o homem branco. A recíproca não foi idêntica quanto á população negra e mestiça, menos ainda em relação à mu­lher negra.

Como a educação é um requisito para o acesso às melhores ocupações na hierarquia de empregos, deduz-se que as populações de cor e as mulheres brancas não estariam capacitadas para assumir os empregos de maior status e, consequentemente, maior remuneração. A mu­lher negra tem menores possibilidades do que qualquer um dos outros grupos. Aqui é preciso estabelecer uma comparação entre a mulher negra e a mulher branca. A partir de 1930, com a decadência das áreas rurais e a consequente ascensão das áreas urbanas, o processo de vida levado a efeito nestas últimas obriga a que o poder econômico do homem, enquanto chefe de família, decaia um pouco. Para manter o nível estável da renda familiar e empreender a sobrevivência, filhos e mulheres são obrigados a ingressar no mercado de trabalho. Por outro lado, um dado exógeno concorre para que esses grupos alijados anteriormente da hierarquia ocupacional se engajem no processo: a necessidade de mão-de-obra para a indústria e outros serviços recentes concorrem para esse fenômeno.

As populações de nível de renda mais baixo são as principais recrutadas. Deste modo, a mulher branca passa a fazer parte da força de trabalho. Mas não podia deixar de ser, devido ao fato de pertencer ao grupo subordinado, ocupa lugares definidos como de “atividades femininas”. Na fase inicial de industrialização, a mulher branca participa da foca de trabalho com o declínio das indústrias tradicionais, principalmente a têxtil, ela se vê expulsa do setor industrial e passa a concentrar-se em empregos burocráticos de nível baixo que, embora mal remunerados exigem certa qualificação educacional. Como consequência desse deslocamento, os homens de classe média ascendem a ocupações burocráticas de nível mais alto. O mesmo não ocorre com a mulher negra, e isto por dois motivos fundamentais: o primeiro, porque a mulher negra ainda não teve acesso suficiente à educação para qualificar-se para estes tipos de empregos burocráticos. Segundo, porque esses empregos implicam relações públicas ou relação com o público. Por exemplo: Comércio de mercadorias. Neste contexto, o critério racial se faz muito mais seletivo, mantendo a mulher negra nos empregos tradicionais, os então como operárias industriais.

Através da análise da situação da mulher negra no mercado de trabalho, vimos como este elemento se acha na mais baixa posição dentro da hierarquia social. No entanto, não é somente pelo reflexo no mercado de trabalho que se pode avaliar a situação de subordinação em que a mulher negra se encontra. O fato mesmo de ser mulher, atraiu para si um tipo de dominação sexual por parte do homem, dominação que se origina nos primórdios da colonização.

A exploração sexual de que foi vítima por parte dos senhores, determinada principalmente pela moral cristã portuguesa, que atribuía à mulher branca das classes mais altas o papel de esposa ou de “solteirona” dependentes economicamente do homem, e limitadas – quando esposa – ao papel de procriadora, ou seja, sua vida sexual limitava-se à posterior maternidade, fez com que a liberação da função sexual masculina, recaísse sobre a mulher negra ou mestiça.

Por seu lado, os mecanismos ideológicos se encarregaram de perpetuar a legitimação dessa exploração sexual através do tempo. Com representações baseadas em estereótipos de que sua capacidade sexual sobrepuja a das demais mulheres, de que sua cor funciona como atrativo erótico, enfim, de que o fato de pertencer às classes pobres e a uma raça “primitiva”, a faz mais desrreprimida sexualmente, facilita-se a tarefa do homem de exercer sua dominação livre de qualquer censura, pois a moral dominante não se preocupa em estabelecer regras para aqueles carentes de poder econômico.

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