A música outra

A versão de ‘Mulheres’ escrita por Doralyce e Silvia, duas mulheres negras, é a versão outra do outro do outro

FONTEO Globo, por Ana Paula Lisboa
Ana Paula Lisboa (Foto: Arquivo/ O Globo)

Eu tô pra ver um ano pior que 2018, pelo menos na minha vida. Na verdade espero não ver, ainda que 2021 e 2022 tenham feito concorrência pesada. Em 2018 olhei para o abismo, e ele me olhou de volta. Semana passada, com a morte de Tina Turner, me lembrei de que este foi o ano em que meditei com maior frequência. Eu meditava três vezes por dia, como quem toma antibióticos. Foi assim que encontrei Tina recitando o Sutra de Lótus no YouTube e celebrei a capacidade do artista em ser múltiplo, em estar aberto a construir novas coisas, mesmo quando parece que não há mais nada a ser construído.

Tina Turner – Foto: Lynn Goldsmith/Divulgação

Meu Deus, pensando agora, foram tantos os abismos políticos! O assassinato da Marielle, a prisão do Lula, a eleição do Bolsonaro. Falo só desses abismos porque prefiro, pelo menos hoje, não expor minha vida pessoal. Muito se fala de 2020, mas 2018 foi o início do fim do mundo.

E falando nele, a gente já chegou à conclusão de que, além da vacina, foi a arte que nos salvou do abismo pandêmico. Filmes, livros e especialmente a música nos fizeram companhia e serviram de alento para milhões de pessoas.

E falando nela, eu estava em 2018, em uma das primeiras vezes que a versão de “Mulheres”, composta por Doralyce e Silvia Duffrayer, foi cantada ao vivo. Era a roda do Samba que Elas Querem, na Cinelândia, se não me engano, na Banca do André. A letra era tão bonita, gostosa, respeitosa e potente, que você aprendia a cantar a plenos pulmões em cinco segundos. Aquela letra era tudo que a gente necessitava cantar a plenos pulmões em 2018.

Qual não foi minha surpresa ao ver o post da Doralyce semana passada contando que o “hino” seria retirado das plataformas digitais a pedido do compositor da versão original e de sua editora. Doralyce ainda escreve que 100% da propriedade intelectual e do direito autoral sobre a versão já tinham sido cedidos ao autor.

Na verdade, o que mais me assustou foi uma frase na resposta do próprio compositor ao post. Não, não foi a parte do “podia ter tirado do YouTube também”, como quem diz “agradeçam!”. Foi a frase: “Nada contra a luta de vocês.”

Simone de Beauvoir cunhou o conceito da mulher como “o outro”, sem reciprocidade do olhar do homem. Grada Kilomba chama a mulher negra de “o outro do outro”, duplamente desqualificada.

A versão de “Mulheres” escrita por Doralyce e Silvia, duas mulheres negras, é a versão outra do outro do outro. Sempre será a luta de “vocês”, para determinadas pessoas. Essas pessoas nunca farão parte, nunca estarão junto, não porque são indesejadas, e sim porque não se reconhecem. Elas são só pessoas, nós somos o outro (do outro).

Você consegue imaginar Chico Buarque proibindo a versão de “Cálice” do Criolo? Chico passou a cantar a versão, agradeceu e disse que Criolo o chamou para o “clube”. O berço pode ser o rap, o samba, o funk, mas não existe fronteira para a poesia. Mais ainda quando a poesia é cantada na rua, nos bares, nas bancas, nas rodas.

Na próxima sexta-feira, Doralyce lança seu novo álbum, “Dassalu”, falando de amor, cheio de referências diaspóricas, influências da música hauçá e nagô, e ela me disse que é sobre isso que ela gostaria de estar falando neste momento. Vamos ouvir.

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