A naturalização de expressões racistas e o perigo da história única

FONTEPor Nathália Esteves da Silva Gomes, enviado para o Portal Geledés

Há duas semanas, assistindo ao noticiário local, fui surpreendida com uma fala da jornalista e apresentadora do telejornal da hora do almoço, que me obrigou a refletir sobre o papel do jornalismo na manutenção dos estereótipos racistas e da criminalização dos negros. A reportagem falava da prisão de três homens, acusados de roubarem fios de energia na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo. 

A matéria mostrava o material do crime (os fios), apresentava dados acerca dos prejuízos que tais ações trazem para os cofres públicos e, automaticamente, para os cidadãos, entrevistava um representante do poder público e alertava para a ilegalidade da ação. Até aí, tudo bem, é o jornalismo cumprindo o seu papel. Não fosse um comentário feito pela apresentadora, ao final da matéria, afirmando que quem compra o fruto do crime também está incidindo em um crime e que, nas palavras da jornalista, existe um mercado negro que alimenta a ilegalidade.

Quando eu ouvi o termo mercado negro, senti um calafrio. Parei por uns segundos, segurei a respiração, e tentei entender o contexto. Ela usava o termo mercado negro para fazer referência ao comércio clandestino, ilegal e criminoso de venda de fios roubados. Automaticamente me veio à cabeça o papel do jornalismo e uma fala do professor Muniz Sodré me atravessou, quando ele reflete que a mídia funciona “[…] como uma espécie de ‘grupo técnico de imaginação’, responsável pela absorção, reelaboração e retransmissão de um imaginário coletivo atuante nas representações sociais” (2015, p. 278). 

Só então me dei conta do estrago daquela fala, do desserviço e do alcance daquele discurso tão estereotipado, racista e, infelizmente, tão naturalizado ainda nos dias atuais. Por se tratar de uma TV de canal aberto e de relevante audiência, quantas pessoas iriam ouvir aquilo e associar o crime e a bandidagem à população negra? E o que eu, enquanto jornalista e pesquisadora da comunicação, poderia fazer? Rapidamente busquei o número de WhatsApp que o programa disponibiliza para os telespectadores interagirem, e enviei uma mensagem.

No texto, enviado com alguns erros de digitação, tamanha era minha pressa em enviar, eu dizia que a expressão mercado negro era sabidamente racista e que jamais deveria ser utilizada por um telejornal, pois trabalhava na manutenção de um ideário colonial de que os negros são criminosos, reforçando estereótipos racistas e relegando toda uma população, a maioria do país, na condição de bandidos. Para justificar minha fala, busquei um texto publicado aqui no Portal Geledés, intitulado “18 expressões racistas que você usa sem saber” e enviei o link.

Logo após enviar, esperei ansiosa pela correção, ainda naquela edição, o que não aconteceu. Passei o dia reflexiva, pensando em como o jornalismo é racista e como suas ações contribuem para legitimar o processo de exclusão e criminalização da população negra. Dois dias depois, eu até já tinha me esquecido do fatídico episódio, a mesma apresentadora falou novamente sobre outro caso de furto de fios e, para minha surpresa, ao citar a existência do mercado paralelo, ela fez referência à existência de um mercado ilegal e não mais um mercado negro. Eu fiquei feliz e entendi, que por mais que nossas atitudes possam parecer pequenas diante do “sistema”, da “estrutura”, não podemos nos calar frente a um crime tão perverso, como o racismo. 

Eu poderia não ter enviado àquela mensagem e simplesmente ter naturalizado a fala da apresentadora, que não foi a primeira e não será a única. Mas precisamos compreender que nossas ações individuais reverberam no ambiente coletivo, já que somos seres sociais. A jornalista pode até a voltar a usar uma expressão racista, mas pelo menos ela saberá que esse tipo de termo, que muitos vão dizer que já faz parte do vocabulário nacional, não será mais tolerado. 

Para finalizar, na última terça-feira (29) eu li a notícia de que o Grupo Boticário não usará mais o termo “Black Friday” (sexta-feira preta) para se referir a um importante período de vendas do varejo, que antecede as compras natalinas. No lugar, adotará o termo “Beauty Week” (semana da beleza). O anúncio feito pelo CEO do Grupo Boticário, Artur Grynbaum, no seu perfil do LinkedIn, diz que a empresa está alinhada com os movimentos de combate ao racismo e “firmes em sua jornada pela busca da equidade racial, dentro e fora da empresa (…)”.

Termino meu texto citando a escritora Chimamanda Ngozi Adichie (2019, p. 26). “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentiram, mas que são incompletos. Eles fazem com que a história se torne a única história”.

 

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18 expressões racistas que você usa sem saber

 

Autoria: Nathália Esteves da Silva Gomes (jornalista, Mestre em Comunicação (UFES) e pesquisadora)
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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