A pena vermelha – Um conto de cor

Era uma manhã como muitas outras. Daquelas que começam cedo, com um beijo de “bom dia” da mãe, na ponta do nariz. O menino levantou da cama e foi direto para a cozinha, com a barriga roncando de fome. Sentou-se à mesa no seu lugar de sempre, esperando o leite quentinho com chocolate que sua mãe preparava todos os dias, antes de levá-lo a escola. Era uma manhã como outra qualquer. Mas não foi uma manhã qualquer.

Por Caroline Balado Pereira, enviado para o Portal Geledés 

Desenho feito pelo meu filho de Caroline Balado, o desenho a inspirou a escrever essa história (Arquivo Pessoal)

Ela estava de pé, olhando o redemoinho de leite e chocolate que se formava enquanto ela girava a colher dentro da caneca e pensou, distraída: “porque é tão difícil mesclar esse chocolate com o leite? Demora tanto para ficar homogêneo! preciso mexer e mexer, até derreter tudo e ficar do jeito que ele gosta”.

“Mamãe, porque eu sou marronzinho e você é rosinha igual a um porquinho?” Interrompeu o menino, sério e curioso, enquanto a olhava misturar o chocolate no leite, distraída, fazendo círculos dentro da caneca com a colher.

Ela ficou surpresa e desconcertada com o questionamento inusitado e repentino daquela pessoa tão pequena. Então parou o que estava fazendo e abaixou-se, até ficar na altura dos olhos dele e poder ver melhor sua pergunta e poder dar uma resposta.

“Somos todos diferentes, filho. Por isso cada pessoa é única e especial no mundo”. Respondeu ela, enquanto o fitava com afeto.

Marronzinho era um menino de olhos grandes, brilhantes e observadores. Cabelos encaracolados que pareciam pedaços de doce de leite. Sua mãe sempre brincava dizendo que queria um pedaço do seu cabelo de sobremesa. E ele ria, achando graça. “Meu cabelo não é de comer, mãe!”. Ele estava sempre atento a tudo e as duas coisas que ele mais gostava no mundo eram: fazer amigos e fazer perguntas.

Marronzinho está com sete anos de idade. É um menino normal, parecido com muitos outros meninos de sete anos. Adora jogar futebol com os amigos, subir em árvores, andar de bicicleta, ir ao cinema, ir a praia, comer doces. É um garoto como muitos que vemos por aí.

Marronzinho também é muito carinhoso e gentil. Um dia não foi a escola. Estava com febre e dor de garganta. Rosinha ficou em casa com ele, monitorando a febre do filho, dando os remédios e fazendo as comidas que ele mais gostava. O garoto estava deitado na sua cama, assistindo a um filme, quando sua mãe entrou no quarto levando para ele gelatina de morango. Marronzinho olhou para ela e disse: “eu tenho muita sorte por você ser a minha mãe”.

Rosinha tinha muito orgulho do seu menino e como toda mãe que ama o seu filho ou a sua filha, sofria ao vê-lo sofrer. Mas a verdade é que ela sabia que às vezes o sofrimento é parte do amadurecimento. Todos precisamos sofrer em algum momento das nossas vidas, para aprendermos a crescer, a sermos mais fortes, seguros e independentes. Ela sabia disso. Mas as mães nunca estão preparadas para assistir ao sofrimento de um filho ou filha.

Nesta manhã, quando Rosinha colocava o lanche do menino na mochila, encontrou dentro dela um desenho feito por ele, amassado e esquecido, lá no fundo. A mãe pegou o desenho, desamassou e olhou. Era um menino, pintado de marrom, atrás de outros dois meninospintados de rosa, com uma bola de futebol em primeiro plano e uma arquibancada com  bonecos de palito em volta deles.

– Que bonito seu desenho, filho!
Exclamou ela, encorajando-o.
Mas o menino, que estava sentado à mesa da cozinha, olhou para o que a mãe segurava com
desinteresse e disse enquanto passava geleia na torrada a sua frente, “a professora escreveu
um recado atrás da folha.”.
Rosinha virou a folha e lá estava escrito: Situação: “Não quiseram brincar comigo por culpa da cor da minha pele.” Conversamos sobre isso e entendemos que não importam as diferenças, todos podemos ser amigos.

A mãe sentiu os olhos queimarem de indignação. A primeira coisa que pensou foi em ir até a escola e gritar com essas crianças. Dizer a elas que ninguém tem o direito de fazer isso com outra pessoas. Que as cores da pele não forjam amizades e que elas estavam erradas deixar seu filho fora das brincadeiras. Em um segundo ela pensou em muitos insultos os quais iria gritar nos ouvidos das crianças e dos pais e mães dessas crianças, por não ensinarem aos seus filhos e filhas sobre o mal da discriminação. E então, no segundo seguinte ela se lembrou que essas crianças eram crianças. Também tinham sete anos e que gritar com elas não os ensinaria nada. Gritar com os pais e mães delas também não os ensinaria nada. Dizer ao filho para defender-se insultando-os de volta também não resolveria nada. Seria ensiná-lo a ser igualmente malvado e a tornaria tão intolerante quanto os demais.

Rosinha percebeu que o dia de todo Marronzinho chega, mais cedo ou mais tarde. No fundo do seu coração ela sabia que o dia do seu Marronzinho também chegaria.

Ela puxou uma cadeira, sentou-se ao lado do menino, que ainda comia sua torrada, e perguntou, com empatia: “quer ouvir uma história?”
– História sobre o que? – perguntou menino, dando mais importância ao seu café da manhã.
– A história de uma pena muito especial – respondeu ela.
– Uma pena, mãe? – perguntou ele, desanimado – o que tem de especial numa pena?
– A pena vermelha de Odíde, – explicou a mãe – um pássaro que vive no Congo.
– Onde é o Congo, mãe?
– O Congo é um país que fica na África. E que também já foi um reino poderoso!

Odíde é um pássaro com a plumagem toda cinza – começou Rosinha – exceto uma!
Ele tem uma única pena no rabo de cor vermelha.
“Alguém arrancou as outras penas vermelhas dele ou ele estava ficando velho e grisalho?” – perguntou Marronzinho, diante do olhar divertido de Rosinha.

Nem uma coisa nem outra! – respondeu a mãe, soltando uma gargalhada – Mas é verdade que você tem muita imaginação!

Os Yorubá, um povo de origem muito antiga, que viveram em muitos lugares da África, contam uma lenda sobre Odíde.

Diz a lenda que Odíde nem sempre foi cinza com uma única pena vermelha. De acordo com o que contam os mais antigos do povo Yorubá, no princípio de tudo, quando nasceu o universo e tudo o que há nele, Odíde tinha uma bonita plumagem branca, como uma nuvem.

Os Yorubá acreditam que um ser supremo, chamado Olorum, criou o universo, a terra e todos os seres vivos.

Um dia Olorum decidiu organizar uma festa no seu reino, o paraíso, que era chamado de Orum. Uma festa para celebrar a beleza e a perfeição.

Em homenagem a tudo o que é belo e perfeito, Olorum convocou todos os pássaros que existiam para um concurso. Um concurso para escolher o pássaro que tinha as penas mais bonitas, aquele que seria o símbolo da perfeição no paraíso.

Assim que os pássaros receberam a notícia desse concurso, começaram a se preparar.
Passavam os dias inteiros se embelezando. Eles queriam ficar cada vez mais bonitos. Cada pássaro do Orum foi cegado pela soberba, pela inveja e pelas armadilhas do ego. Um querendo ser melhor que o outro, para vencer a competição, para ser o símbolo da perfeição. Eles já não eram mais amigos. Olorum disse que apenas um seria o vencedor. Nesse momento todos eram rivais.

Todos estavam inquietos, ansiosos e competitivos. Todos, menos um. Odíde. Enquanto os pássaros do Orum estavam preocupados em melhorar a aparência, Odíde não fazia nada. Todos se esforçavam para ficarem impecáveis. Mas Odíde não se preocupava. Os dias iam passando e o concurso se aproximava. Odíde estava satisfeito com sua plumagem cor de nuvem e não pensava ter que fazer nada para melhorá-la. Afinal, ele sabia que no concurso participariam todos os pássaros do Orum. Ele sabia que qualquer um poderia ganhar, pois eram todos lindos e vistosos. Mas apenas um ganharia. E ele não ambicionava esse prêmio. Não como os demais. Odíde estava feliz com o que era e com o mundo a sua volta. Afinal, ele vivia no paraíso. O que mais poderia pedir?

No entanto os outros pássaros ficaram com inveja de Odíde, da sua felicidade, do seu estado de gratidão e da sua tranquilidade. Ficaram com raiva por estarem tendo tanto trabalho com a própria aparência, enquanto aquele pássaro branco e vistoso não fazia nada.

Preocupados que Odíde pudesse ser o vencedor do concurso, os outros pássaros se reuniram para armar um plano.
Decidiram que iriam estragar a plumagem de Odíde, jogando cinzas nele, para que ficasse todo cinza e sem graça!
E foi o que fizeram.
Mas o plano falhou!
Quando jogaram as cinzas sobre ele, estava ventando muito e as cinzas se espalharam no ar.
E Odíde continuava alvo como a paz que exalava.
Mas eles não desistiram! Queriam destruir a beleza de Odíde a qualquer preço.

Os pássaros se reuniram outra vez e decidiram procurar um feiticeiro para ajudá-los com sua crueldade.
O feiticeiro preparou uma poção e disse aos alcoviteiros que deveriam derramá-la sobre o pássaro branco.
“Essa poção fará com que a plumagem de Odíde mude para a cor mais triste e feia que existe e ele não terá nenhuma chance de vencer o concurso” – disse o feiticeiro.
Os pássaros sorriram satisfeitos ao ouvir isso. Pensaram ter conseguido exatamente o que precisavam.
“Com certeza Odíde não vencerá o concurso com uma plumagem de cor triste e feia!” – disseram.
Sobrevoaram o paraíso em busca de Odíde. Quando o encontraram, se esconderam, e jogaram sobre ele a poção mágica.
Odíde estava distraído, bebendo água no rio, quando viu seu reflexo. Percebeu que estava diferente.
Sua plumagem estava toda acinzentada, exceto por uma única pena vermelha no rabo. Ele ficou confuso e espantado! Não sabia o que havia acontecido.

Os pássaros invejosos observavam de longe a surpresa de Odíde ao ver seu reflexo no espelho d’água e se regozijaram de alegria.
Eles acreditavam que tinham conseguido fazer com que ele não participasse da competição.
Todavia, quando chegou o grande dia, o dia do concurso para escolher o pássaro mais bonito do Orum, lá estava Odíde!
Todos os pássaros ficaram espantados com a sua coragem em aparecer no concurso com aquelas penas cinzas.
Todos esperavam pelo resultado da competição com ansiedade e ficaram boquiabertos quando Olorun anunciou o nome do vencedor!
“Eu escolho, como símbolo de beleza e perfeição do Orum, Odíde, – disse Olorum – ele é o pássaro mais bonito do paraíso.
Os outros pássaros ficaram envergonhados pelo que fizeram e aprenderam que não importam as cores, toda cor é bela e perfeita.
“E é Por isso – disse Rosinha – que até hoje, nos rituais de coroação de reis e rainhas do povo Yorubá, é usada a pena vermelha da cauda de Odíde, como símbolo de sabedoria. Os reis, rainhas e líderes religiosos a usam na cabeça, para que nunca se esqueçam da importância da virtude ao longo de suas vidas. Para lembrarem que nenhuma riqueza ou poder os torna melhores ou mais bonitos que os outros.

Quando Rosinha terminou a história, Marronzinho estava calado, pensando.
A mãe se levantou e começou a recolher a mesa do café da manhã quando o menino murmurou. Mais para ele mesmo que para ser ouvido, “onde eu vou encontrar uma pena vermelha de Odíde?”
A mãe olhou o menino, intrigada, e perguntou, “para quê você precisa de uma pena de Odíde, filho?”
“Porque um dia eu vou ser rei” – respondeu ele, enquanto pegava sua mochila e saía pela porta, confiante.
A mãe sorriu e disse ao filho, beijando-o na testa, “nunca desista dos seus sonhos.”
“O mundo não aguenta os meus sonhos”, respondeu ele.

Caroline Balado Pereira
Em agradecimento e homenagem ao meu filho Miguel, agora com oito anos, por me fazer a
mãe mais orgulhosa do mundo, todos os dias.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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