A relação colonial entre saneamento básico e população negra brasileira: notas sobre racismo ambiental, genocídio eugenista e estigmas raciais

Atualmente tem havido um debate acerca das desigualdades sanitárias brasileiras que envolvem a inadequação em saneamento básico. Apesar de somente agora este debate estar sendo racializado, saneamento e raça/racismo possuem uma relação tão antiga quanto a colonização e remetem ao que Carolina Maria de Jesus denominou de Quarto de Despejo ou ao que mais tarde foi denominado pelo movimento negro estadunidense de racismo ambiental.

Antes de prosseguirmos é necessário nos ater a dois conceitos importantes, o primeiro trata-se de saneamento básico. Em virtude das empresas concessionárias de saneamento, que historicamente realizam os serviços, obras e infraestruturas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, comumente associamos saneamento básico à água e ao esgoto. No entanto, segundo a lei de saneamento, saneamento básico abrange também a coleta e destinação adequada dos resíduos sólidos (lixo) e da drenagem pluvial (água da chuva). Portanto, saneamento básico envolve água, esgoto, lixo e água da chuva.

O segundo conceito diz respeito ao conceito de racismo ambiental que equivale ao impacto, dano ou risco ambiental racialmente desproporcional, independente da intenção do causador (empresas poluidoras e/ou Estado), que impacta o ambiente de moradia, trabalho e/ou lazer de grupos historicamente racializados. Por exemplo, o impacto de resorts e condomínios de luxo em áreas protegidas, usinas hidrelétricas-eólicas-carvoeiras, latifúndios agropecuários, monocultura de soja e eucalipto, indústrias petroquímicas-farmacêuticas, carniciculturas, atividades mineradoras, poluição por pesticidas e agrotóxicos e tantas outras cujos danos/custos ambientais têm sido historicamente arcados pelos povos originários (“indígenas”) e pela população negra em benefício do grande empresariado agroindustrial branco-urbano-sudestino.

Tendo isso em vista, discuto aqui o racismo ambiental por inadequação em saneamento básico, destacando a relação histórica e colonial entre saneamento e população negra brasileira que abarca não ‘apenas’ a desigualdade racializada no acesso a saneamento, como também a mortalidade da população negra em consequência das doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado e, ainda, o estigma racial de que pessoas negras são sujas, imundas e fedidas. A histórica relação entre saneamento e população negra portanto envolve racismo ambiental, genocídio eugenista e estigmas raciais.

Desde os navios tumbeiros de África até a o tráfico em solo brasileiro, a população negra já era destituída das condições básicas de saneamento e higiene, sobrevivendo em situações insalubres de pouca ventilação, água contaminada, ambiente com fezes e a convivência com inúmeros vetores de doenças como baratas, ratos e mosquitos. Situação que se manteve nas senzalas, cortiços, porões, prisões, mocambos e favelas de outrora e de agora. Em 2010, segundo os dados do censo IBGE, mesmo a população negra sendo 51% da população brasileira representava 79% da população que sequer tinha banheiro em casa, 69% da população sem coleta de lixo, 62% da população sem água encanada, 59% da população sem rede de esgoto. Na prática, isso significa que milhões de brasileiros negros estavam em condições mais vulneráveis de saúde em virtude da inadequação em saneamento básico.

A consequência desse quadro é um cenário de genocídio cuja causa consiste nas condições ambientais insalubres de moradia, trabalho e/ou lazer. Das inúmeras mortes por doenças relacionadas à inadequação de saneamento ambiental desde os navios tumbeiros (por isso eram chamando de tumbeiros) até os corpos negros espalhados pelas cidades coloniais, as doenças de saneamento eram quase uma sentença de morte para uma população já fragilização pela fome, miséria, trabalho forçado de longas jornadas e punições severas. Tal como naquela época, ainda hoje a população negra segue morrendo por doenças consideradas evitáveis e negligenciadas, como verminoses, diarreia, tuberculose, cólera, leptospirose, dengue, malaária, febre amarela e hanseníase, dentre outras. A cada 1h e ½ morre uma pessoa negra no Brasil por doença relacionada à inadequação do saneamento, metade dessas mortes são de bebês e idosos negros, segundo os dados do DataSUS.

E, como se não bastasse viver e morrer em meio ao lixo e à merda, a população negra historicotidianamente tem sido reduzida a corpo-lixo-dejeto-descartável. Desde o Brasil Colonial até o Brasil contemporâneo, inúmeros são os casos de que pessoas negras são atacadas, humilhadas e simbolicamente violentadas como sujas, imundas e fedidas. Preto fede, preto sujo, preta fedida, preta imunda são alguns dos xingamentos coloniais que perduram ainda hoje, gritados na rua ou pichados em portas de banheiro, ou então atualizados em personagens humoristas e piadas racistas. Como se não bastasse viver destituído de direito ao saneamento e do direito à vida em consequência das mortes advindas, a humilhação racial e a destituição da própria dignidade é também outra marca da relação colonial entre saneamento e raça/racismo.

Como nos tempos coloniais, não reconhecidos como sujeitos, tampouco como sujeitos de direito; somado ao projeto de embranquecimento que une o pós-abolição e a proclamação da República, o genocídio eugenista segue como política de Estado nos seus diversos modos, da atuação policial à inadequação em saneamento. Um cenário que tende a se agravar com o novo marco de saneamento que trata o direito ao saneamento como mercadoria e abre espaço para a privatização do setor.

Diante disso, a nova pandemia do coronavírus se soma à eterna pandemia que a população negra e povos originários e tradicionais têm vivido diante da insalubridade ambiental oriunda pelo racismo ambiental por inadequação em saneamento desde os tempos coloniais. Enfim, há inúmeras formas de embranquecer uma nação, o saneamento tem sido uma delas, precarizando a vida, produzindo a morta física e simbólica e consumando ativamente o genocídio eugenista da população negra brasileira.

* Este ensaio consiste no resumo da minha pesquisa de mestrado, para informações mais detalhadas ver dissertação “Coisas negras no quarto de despejo: saneando subjetividades, corpos e espaços”, disponível em: < http://objdig.ufrj.br/42/teses/860943.pdf > ou artigo “Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental”, disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v29n2/1984-0470-sausoc-29-02-e180519.pdf>.

 

Victor de Jesus é doutorando em Ciências Sociais no PGCS UFES (pesquisador bolsista FAPES), mestre em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ (pesquisador bolsista CNPq), licenciado e bacharel em Ciências Sociais (UFES) e tecnólogo em saneamento ambiental (IFES). Atualmente é membro-associado da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e compõe o Grupo de Pesquisa Narradores da Maré (UFES).
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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