A Sombra do Sonho de Clarice

FONTEPor Viviane Pistache, enviado ao Portal Geledés
Foto: Divulgação

O longa-metragem convidado para ser exibido no Lanterna Mágica no dia 21 de março foi O Sonho de Clarice, de Fernando Gutierrez e Guto Bicalho. A sinopse diz que Clarice é “uma menina extremamente criativa que passa pelo processo de superar a perda da mãe. A obra, que trata sobre relações, as pequenas alegrias da vida cotidiana e o quão mágico estas podem ser, contrasta a linguagem do mundo real com uma viagem surrealista em um mundo fantástico como alegoria para esta jornada de superação”.

A abertura do filme é uma sequência de fotos em preto e branco de uma família de artistas de rua, ao som de uma trilha circense que se torna ainda mais poderosa com a voz de Ellen Oléria. Aos poucos é apresentado o universo de Clarice a partir de seu quarto: uma garotinha negra sendo despertada por seu pai, um homem branco. Parte da rotina de Clarice é acompanhar o pai perambular pela cidade como carroceiro que recolhe lixo e ludicidade a partir do que foi descartado, estimulando a criatividade da filha. Clarice tenta se socializar com crianças de sua escola, com a vizinha Tetê e sobretudo com  Tatu, sua pelúcia favorita e grande companheira de jornada. 

O filme é levemente inspirado na vida de seus realizadores, Clarice é também o nome da filha do diretor Fernando Gutiérrez ao passo que César Lignelli, que assina o desenho de som, também é músico multi instrumentista e artista de rua. O filme é tecnicamente primoroso, com destaque para a atuação do elenco mirim e a simpática Tetê, bem como o trabalho de César, que sustenta com maestria toda a trilha da trama. Guto Bicalho, que foi convidado a princípio para fazer o Storyboard, se revelou fundamental como co-diretor do filme. Fernando Gutierrez em sua jornada de cineasta e professor de escola pública, trouxe seu corpo discente para fortalecer o filme, sobretudo no roteiro, de arquitetura  elaborada quase obsessivamente. 

Obsessão foi uma palavra recorrente na fala do Guto Bicalho e ajuda a entender tanto a potência quanto as sombras do Sonho de Clarice. O luto infantil é um tema árido, com sua dinâmica de dores e repetições que agudiza temores próprios da infância, por si só tão profícua em bichos papão. Embora o filme não seja um thriller, Clarice enfrenta tantos pesadelos que a fronteira entre luto, medos infantis e possíveis transtornos psíquicos se esmaecem. 

O filme se ancora muito na criatividade da Clarice como bálsamo da resiliência, mas acaba por sobrecarregá-la mentalmente. Até a costura, ofício que herdou da mãe e compartilha  com a Tetê,  traz  momentos de leveza, mas acaba tendo mais tempo de tela na confecção dos pesadelos da garotinha. Mais do que bordar poesia, Clarice tenta desembolar um emaranhado de agruras, cravadas por uma monstruosa agulha persecutória que eventualmente surge da casa-carroça. 

Assim, o filme carrega nas tintas em muitos aspectos. Uma questão que fica é porque o pai é apresentado como artista de rua, mas se torna carroceiro de lixo? Clarice que já é privada da companhia da mãe, acaba sendo subtraída do acesso a confortos básicos, como uma tapioca no café da manhã, vivendo numa casa cujo teto é uma caçamba de lixo ambulante. Mesmo vivendo num ambiente minimamente afetuoso, Clarice é muito solitária em sua negritude. Sintoma disso é que seu pai, homem branco em avançado estado de calvície, não entende nem cuida do lindo black power da filha que aparece despenteado recorrentemente. Ademais, Clarice é cerceada de poder passar mais tempo com a Tetê e coleguinhas de escola. 

O filme não é completamente alheio ao debate racial, o que é atestado desde a abertura com a presença de Ellen Oléria. Os créditos também informam a consultoria sobre candomblé, possivelmente para o rápido encontro entre mãe e filha num espaço fantástico, talvez o Orun. Certamente devemos celebrar o protagonismo negro nas animações, mas alguns cuidados devem ser observados seja para não cair na comodização do protagonismo negro para ganhar editais; ou na condução de histórias difíceis como a de luto e da pobreza, para não resvalar numa “pornografia dos traumas negros“, conforme a provocação do escritor Jason Okundaye. 

Difícil não observar que o debate do filme foi conduzido por cinco homens brancos cisgênero. Embora não seja possível especular sobre a diversidade da equipe do filme, em algum momento do debate foi citado que o filme teve verbas para consultorias que foram descartadas, como a de uma profissional que teria dito que o sotaque deveria ser sudestino. Opiniões equivocadas devem ser descartadas mesmo, mas consultoria é algo muito sério dentro de um filme de animação cujo protagonismo é infantil e negro. Por mais que os traços da Clarice, de sua mãe e da Tetê sejam maravilhosos, a beleza negra não é apenas alegoria, mas possibilidade de sonhar sonhar. Assim, Clarice  realmente precisava passar por tantos pesadelos para além do luto? Qual é de fato o sonho de Clarice?


Viviane Pistache

Viviane Pistache é preta das Minas Gerais, pesquisadora, roteirista, curadora, júri e por vezes crítica de cinema.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

-+=
Sair da versão mobile