A Transformação do silêncio em linguagem e ação

*Comunicação de Audre Lorde no painel “Lésbicas e literatura” da Associação de Línguas Modernas em 1977 e publicado em vários livros da autora

no Minhateca

Muitas vezes penso que preciso dizer as coisas que me parecem mais importantes, verbalizá-las, compartilhá-las, mesmo correndo o risco de que sejam rejeitadas ou mal-entendidas. Mais além do que qualquer outro efeito, o fato de dizê-las me faz bem. Eu estou aqui como poeta Negra lésbica e sobre o significado de tudo isso repousa o fato de ainda estar viva, coisa que poderia não ter sido. Há menos de dois meses, dois médicos –um homem e uma mulher- me disseram que devia fazer uma operação de mama e que as chances de que o tumor fosse maligno estavam entre 60 e 80 por cento.

Entre essas palavras e a operação, passaram três semanas de agonia em que precisei reorganizar involuntariamente toda minha vida. A operação já passou e o tumor era benigno. Mas durante essas três semanas, tive que retornar sobre mim mesma e sobre minha vida com uma severa e urgente lucidez que me deixaram ainda tremendo, mas ainda mais forte.

É uma situação com a qual, muitas mulheres se deparam, talvez algumas de vocês, hoje.

As coisas que experimentei nesse período me ajudaram a compreender muito do que sinto sobre a transformação do silêncio em linguagem e em ação.

Ao tomar forçadamente consciência de minha própria mortalidade, do que desejava e queria de minha vida, durasse o que durasse, as prioridades e as omissões brilharam sob uma luz impiedosa, e do que mais me arrependi foi de meus silêncios. O que me dava tanto medo? Questionar e dizer o que pensava podia provocar dor, ou a morte. Mas, todas sofremos de tantas maneiras todo o tempo, sem que por isso a dor diminua ou desapareça. A morte não é mais do que o silêncio final. E pode chegar rapidamente, agora mesmo, mesmo antes de que eu tenha dito o que precisava dizer.

Só havia traído a mim mesma nesses pequenos silêncios, pensando que algum dia ia falar, ou esperando que outras falassem. E comecei a reconhecer uma fonte de poder dentro de mim ao dar-me conta de que não devia ter medo, que a força estava em aprender a ver o medo a partir de outra perspectiva.

Eu ia morrer cedo, tivesse falado ou não. Meus silêncios não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês. Mas cada palavra que tinha dito, cada tentativa que tinha feito de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequadas para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado de todas essas mulheres que me deu forças e me permitiu analisar a essência de minha vida.

As mulheres que me ajudaram durante essa etapa foram negras e brancas, velhas e jovens, lésbicas, bissexuais e heterossexuais, mas todas compartilhamos a luta da tirania do silêncio. Todas elas me deram a força e a companhia sem as quais não teria sobrevivido intacta. Nessas semanas de medo agudo –na guerra todas lutamos, sutilmente ou não, conscientemente ou não, contra as forças da morte- compreendi que eu não era só uma vítima, mas também uma guerreira.

Que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer? Que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio? Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento um de seus medos. Porque sou mulher, porque sou negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma poeta guerreira Negra fazendo seu trabalho. Pergunto : vocês, estão fazendo o seu?

E, certamente tenho medo, porque a transformação do silêncio em linguagem e em ação é um ato de auto-revelação, e isso sempre parece estar cheio de perigos. Mas minha filha, quando falei de nosso tema e de minhas dificuldades, me disse: “Fala para elas de como nunca se é uma pessoa inteira se guardas silêncio, porque esse pedacinho fica sempre dentro de ti e quer sair, e se segues ignorando-o, ele se torna cada vez mais irritado e furioso, e se nunca o deixar sair um dia diz: basta! e te dá um soco dentro da boca”.

No silêncio, cada uma de nós desvia o olhar de seus próprios medos – medo do desprezo, da censura, do julgamento, ou do reconhecimento, do desafio, do aniquilamento. Mas antes de nada acredito que tememos a visibilidade, sem a qual entretanto não podemos viver, não podemos viver verdadeiramente. Neste país em que a diferença racial cria uma constante, ainda que não seja explícita, distorção da visão, as mulheres Negras temos sido visíveis por um lado, enquanto que por outro nos fizeram invisíveis pela despersonalização do racismo. Ainda dentro do movimento de mulheres tivemos que lutar, e seguimos lutando, para recuperar essa visibilidade que ao mesmo tempo nos faz mais vulneráveis: a de ser Negras. Porque para sobreviver nesta boca de dragão que chamamos América, tivemos que aprender esta primeira lição, a mais vital, e não se supunha que fossemos sobreviver. Não como seres humanos. Nem se suponha que fossem sobreviver a maioria de vocês, negras ou não. E essa visibilidade que nos faz tão vulneráveis, é também a fonte de nossa maior fortaleza. Porque a máquina vai tratar de nos triturar de qualquer maneira, tenhamos falado ou não. Podemos nos sentar num canto e emudecer para sempre enquanto nossas irmãs e nossas iguais são desprezadas, enquanto nossos filhos são deformados e destruídos, enquanto nossa terra está sendo envenenada, podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo.

Em minha casa se celebra este ano a festa de Kwanza, o festival Afro-americano da colheita, que começa o dia depois do Natal e dura sete dias. Há sete princípios de Kwanza, um para cada dia. O primeiro princípio é Umoja, que quer dizer unidade, a decisão de lutar pela unidade e mantê-la em nós mesmas e na comunidade. O princípio de ontem, o segundo dia, era Kujichagulia: a autodeterminação, a decisão de definir a nós mesmas, de dar nomes, de falar por nós em vez de sermos nomeadas e expressadas por outros. Hoje é o terceiro dia de Kwanza, e o princípio de hoje é Ujima: o trabalho coletivo e a responsabilidade, a decisão de construir e conservar juntas nossas comunidades, de reconhecer e resolver juntas nossos problemas.

Cada uma de nós está hoje aqui porque de um modo ou outro compartilhamos um compromisso com a linguagem e com o seu poder, também com a recuperação dela que foi utilizada contra nós. Na transformação do silêncio em linguagem e em ação, é de uma necessidade vital para nós estabelecer e examinar a função dessa transformação e reconhecer seu papel igualmente vital dentro dessa transformação.

Para quem escrevemos, é necessário examinar não só a verdade do que falamos mas também a verdade da linguagem em que o dizemos. Para outras, se trata de compartilhar e difundir aquelas palavras que significam tanto para nós. Mas em princípio, para todas nós, é necessário ensinar com a vida e com as palavras essas verdades que acreditamos e conhecemos mais além do entendimento. Porque só assim sobreviveremos, participando num processo de vida criativo, contínuo e em crescimento.

E sempre se fará com medo – da visibilidade, da dura luz da análise, talvez do julgamento, da dor, da morte. Mas, com exceção da morte, nós já passamos por tudo isso e o fizemos em silêncio. Eu penso todo o tempo que se tivesse nascido muda, ou se tivesse mantido um juramento de silêncio toda minha vida, teria sofrido igual, e igualmente morreria. É bom lembrar, para não perder a perspectiva.

E quando as palavras das mulheres clamam por serem ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer sua responsabilidade de tirar essas palavras para fora, lê-las, compartilhá-las e examiná-las em sua pertinência à vida. Não nos escondamos detrás das falsas separações que nos impuseram e que tão seguidamente as aceitamos como nossas. Por exemplo: “Não posso ensinar a literatura das mulheres Negras porque sua experiência é diferente da minha”. Entretanto, durante quantos anos ensinaram Platão, Shakespeare e Proust? Ou: “Ela é uma mulher branca, o que ela pode dizer para mim” Ou: “Ela é lésbica… O que vai dizer o meu marido, ou meu chefe?” Ou ainda: “Esta mulher escreve sobre nossos filhos, e eu não sou mãe”. E assim todas as outras formas em que nos abstraímos umas das outras.

Podemos aprender a trabalhar e a falar apesar do medo, da mesma maneira que aprendemos a trabalhar e a falar apesar de cansadas. Fomos educadas para respeitar mais ao medo do que a nossa necessidade de linguagem e definição, mas se esperamos em silêncio que chegue a coragem, o peso do silêncio vai nos afogar.

O fato de estarmos aqui e que eu esteja dizendo essas palavras, já é uma tentativa de quebrar o silêncio e estender uma ponte sobre nossas diferenças, porque não são as diferenças que nos imobilizam, mas o silêncio. E restam tantos silêncios para romper!

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