A única semelhança

Cientista de dados negro, preso por engano no Rio depois de reconhecimento por foto, narra os dias no cárcere e a dificuldade para ser solto

FONTEPiauí, por Raoni Lázaro Rocha Barbosa
Raoni Lázaro Rocha Barbosa (Foto: imagem retirada do site Piauí)

Casamento, viagens, o emprego dos sonhos e muitos planos pela frente. Os últimos meses trouxeram marcos importantes à trajetória de Raoni Lázaro Rocha Barbosa, de 34 anos. Em novembro do ano passado, o cientista de dados foi contratado pela multinacional IBM, uma das maiores empresas do mundo no setor de Tecnologia da Informação, para liderar a equipe de Business Intelligence (BI). Celebrou muito a conquista com a companheira, Érica Armond, com quem divide a vida há cinco anos. A moça, que Raoni conheceu no Tinder, se tornou sua esposa em janeiro. Junto com o labrador Thor, o casal mora em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, bairro onde Raoni foi criado.

O translado de Foz do Iguaçu para casa era o único que ele esperava fazer naqueles dias de agosto. O rapaz voltava de uma viagem de família e pretendia descansar antes de mais uma semana de trabalho. Em vez do despertador, o que acordou Raoni naquela terça-feira foi a campainha, acionada por policiais civis que traziam consigo um mandado de prisão. Ele foi levado da casa onde mora com a esposa para a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), de lá para o Instituto Médico Legal (IML) e do IML à cela comum do presídio de Benfica. Passou quatro dias lá, mesmo tendo ensino superior completo, especializações concluídas no MIT, em Harvard e na FGV e outras duas pós-graduações em andamento na PUC-Minas. Uma vez transferido para a cela especial, lá permaneceu mais vinte dias até a Polícia Civil admitir que havia cometido um erro ao detê-lo. Com base apenas no reconhecimento por foto, o cientista, que não tinha qualquer passagem pela polícia, foi confundido com Raoni Ferreira dos Santos, o Gago, acusado de integrar uma milícia em Duque de Caxias. 

“A única coisa que temos em comum, além do nome parecido, é a cor da pele”, explicou Barbosa. Para piorar, como o processo corria em segredo de justiça, a defesa só teve acesso aos detalhes no décimo segundo dia de cárcere. O caso do cientista de dados foi um dos três episódios recentes de prisões “por engano” no Rio depois de erros no reconhecimento facial. Todos são negros.  A pedido da piauí, Barbosa relatou sua história, transformada em diário.

(Em depoimento a Hellen Guimarães)


Segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Na sexta-feira, eu, minha esposa, minhas cunhadas, seus maridos e filhos, a gente fez uma viagem para Foz do Iguaçu. Esperamos todos estarem vacinados para fazermos essa viagem. Chegamos em casa por volta das 21 horas, cansados e já vamos dormir para recuperar as energias para o dia seguinte. O plano é acordar umas sete da manhã, porque às oito costumo começar a trabalhar em home office. Acordo, trabalho e, mais tarde, pratico meus esportes. Durante a semana, é basicamente esse o meu cronograma. Faço jiu-jítsu há anos, também gosto de andar de skate e de fazer uma espécie de esgrima japonesa chamada kenjutsu. Retomei essas atividades há pouco tempo, após a primeira dose da vacina. Moro em Campo Grande, onde fui criado. Já morei no Leblon, no Joá e em Botafogo e voltei há uns quatro anos. Os vizinhos me conhecem, a gente utiliza muito o comércio aqui do bairro.

Raoni e a esposa, Érica, em Foz do Iguaçu, no fim de semana anterior à prisão. (Foto: Arquivo pessoal)

Terça-feira, 17 de agosto de 2021

Às seis da manhã, minha esposa me acorda gritando, muito nervosa: “Raoni, os policiais estão aqui! Eles estão pedindo para falar com você!” Levantei meio desnorteado e fui ver o que era. Os policiais perguntaram o meu nome completo, eu respondi, estava correto [no mandado de prisão]. Me mostraram uma foto, a do Detran, e eu falei “sim, esse sou eu”, e eles me deram voz de prisão. Quando vi aquilo… era um papel preto e branco onde se lia “prisão preventiva de trinta dias por associação criminosa”. Na hora eu disse que era mentira, que era preciso ir atrás e averiguar, que não podia ser. Eles agiram de uma forma meio arbitrária: pedi mais detalhes, não me deram e disseram que eu tinha que ir para a delegacia.

A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi: “Cara, será que isso é um sequestro?” Me deu medo. Pensei que, de repente, eram policiais falsos que inventaram um crime qualquer ali para me levar. “Pô, não fiz nada! Por que querem me prender?” Eu fui tentando explicar a eles, que só me respondiam: “Cara, eu só tô vindo aqui buscar você. Chegando à delegacia, você explica para quem tiver que explicar.” Conforme eu fui insistindo para me darem mais informações, eles ficaram meio nervosos e começaram a me apressar: “Não não, não tem detalhe nenhum não, vambora!” Um deles ficou mais irritado e me algemou, até machucando o meu braço. Alguns vizinhos apareceram e ficaram olhando, tentando entender o que estava acontecendo. Mas era muito cedo e, assim que mais gente foi aparecendo, eles me colocaram no banco de trás do carro, de uma forma até meio bruta. É uma situação muito difícil, porque sei da minha índole, mas quem não conhece pode desconfiar, né? 

Eu fiquei com medo, porque pensei que pudesse ser um grupo de extermínio que quisesse me matar do nada… sei lá! Na hora, você pensa em todas as hipóteses possíveis e imagináveis. Foi até um pouco estranho porque, quando eu vi que estava realmente chegando à delegacia, fiquei até um pouco aliviado. Pensei: “Bom, agora é só eu me explicar e vai correr tudo bem, porque eu sei que não fiz nada.”

Mas não foi assim. Na delegacia, a cada vez que eu tinha a chance, eu dizia para todo mundo que vinha até mim: “Eu quero minha ligação e quero saber o que está acontecendo.” E só me diziam: “Daqui a pouquinho a gente fala, daqui a pouquinho a gente resolve.” E nada. Tentei me explicar, ninguém quis me ouvir e me levaram para uma cela de 0,5 metro por 1,5 metro, sem comida e sem água. Isso eram umas 10 horas da manhã. Quando foi por volta das 16 horas, veio alguém com um papel perguntando se eu falaria na presença do meu advogado, e eu respondi que sim, porque também fiquei com medo. Não sabia o que estava acontecendo e precisava de apoio, mas, depois disso, eu só fiquei preso. Não consegui ver meu advogado, eles só me transferiram. Da Draco, me encaminharam para o Instituto Médico Legal e, do IML, para a penitenciária de Benfica.

Já eram umas 20 horas quando cheguei ao presídio. Ao dar entrada, a primeira coisa que você tem que dizer é a que facção pertence. Se a nenhuma, como era o meu caso, você é chamado de “neutro”. Depois disso, você tem que tirar toda a roupa, você não pode entrar de cueca, e eles revistam todas as peças. Na sequência, você é encaminhado para a cela. Fui um dos últimos a entrar e tentei ver como funcionava a dinâmica ali.


Quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Fui um dos últimos a entrar na cela. Ainda estou tentando perceber como funciona a dinâmica na prisão. Estou com muito medo, porque temos toda aquela crença de que é um lugar onde seremos atacados, esfaqueados a qualquer momento, baseada no que a gente ouve por aí ou vê em filmes. Devem ter umas 60, 70 pessoas presas aqui, num espaço projetado para umas 40, talvez 50. 

Além do medo de sofrer alguma agressão, não consigo esquecer que estou numa cela superlotada no meio de uma pandemia. Ninguém aqui usa máscara e, agora, com essa variante Delta… tenho muito medo de ficar doente. Manter a saúde é minha maior preocupação, porque ela é a única coisa que tenho aqui. Estou com medo de pegar não só o coronavírus como uma pneumonia, porque faz muito frio! Não há vidro ou barreira, apenas grades já conectadas à parte externa. O vento é muito forte, e a sensação é a de estar dormindo ao relento. Não tem cobertor, não tem roupa de frio, tem gente que só tem bermuda, não tem chinelo nem camisa. Se não tiver colchão, temos de dormir no chão mesmo ou em cima de uma chapa de ferro. É desumano.



Quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Hoje está ainda mais cheio: somos 81 presos nesta cela. Por aqui, não temos muito o que fazer. Não há visita ou banho de sol. Percebo que os presos são muito organizados em relação à limpeza, à distribuição do alimento, às regras de que ninguém pode encostar no outro. Mas todo dia é a mesma coisa: você acorda e fica conversando com os outros. Cada um fala do seu caso, ou de sua família, das perspectivas para o futuro, do que vai fazer quando sair. 

Eram realidades muito diferentes da minha. Conheci gente que roubou porque perdeu o emprego na pandemia e não tinha dinheiro para sobreviver. Foi despejado, teria que morar na rua e, no desespero, roubou uma peça de carne que tentaria dar como pagamento ou vender para pagar o dono do apartamento. Está errado roubar, mas é muito mais complexo, né? Existem uns poréns aí para além de certo ou errado, preto no branco. Também há pessoas que cometeram vários delitos. A gente acaba se expondo bastante aqui. Mais do que sobre o que foi feito ou deixou de ser, falamos sobre a vida como um todo, até para não ficar o tempo todo pensando nos problemas. 

À tarde, consegui falar com o advogado pela primeira vez. Agora devo começar a ter alguma noção do andamento do processo. Amanhã tenho a audiência de custódia. Espero que esse pesadelo acabe.


Sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Pela manhã, vieram me buscar para minha audiência de custódia, mas o “meu” processo está em segredo de justiça. Logo, nem os advogados conseguem saber por que eu estou preso, e não competia à juíza da audiência saber se eu deveria ser liberado ou não. Apenas o juiz para o qual o caso foi designado poderia ter acesso aos detalhes. Tendo isso em vista, a audiência serviu apenas para dar prosseguimento aos trâmites burocráticos. Minha prisão injusta foi mantida.

À tarde, fui transferido da cela comum para a especial, de presos com ensino superior completo. Aqui também não temos direito a banho de sol ou visita. A diferença desta para a cela comum é que aqui há menos gente e, por isso, o colchão tende a ser melhor. Mas é o mesmo esquema de beliche de aço e colchão de espuma.



Segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Mais um dia sem ideia de quando voltarei para casa. A comunicação com os advogados é o único jeito de obter alguma informação do mundo lá fora, mas só acontece uma vez por semana. Se quero falar com minha esposa, repasso a eles para que eles escrevam uma carta e levem para ela. 

Nada aqui ameniza essa agonia ou ajuda a manter a esperança. A única coisa que me deixou aliviado foi ouvir deles que meu emprego está garantido, que 99% dos meus amigos e minha família toda estão ajudando minha esposa, que ela não está sozinha. O que me impede de me entregar ao desespero é saber que ela está me esperando lá fora.

Nós nos casamos no civil no início deste ano. Estamos juntos há cinco anos, e nossa festa de casamento estava marcada para o dia 16 de outubro. Dois meses antes, vim parar aqui. Não sei por quanto tempo ficarei, não sei se teremos que cancelar tudo. Tenho medo de não ser libertado a tempo. Tudo aqui é muito incerto, você fica dependendo de situações que você desconhece.



Terça-feira, 24 de agosto de 2021

Sigo sem entender por que estou aqui. Foram quatro dias na cela comum até a audiência de custódia, e este é meu quarto dia na cela especial. Eu só quero ir para casa, sair daqui e retomar minha vida normal.



Sábado, 28 de agosto de 2021

Hoje, finalmente, no décimo segundo dia de cárcere, o sigilo do processo caiu e meus advogados conseguiram ter acesso ao inquérito. A foto que está lá não é minha! Eles me confundiram com outra pessoa, um Raoni suspeito de integrar uma milícia em Caxias. A única semelhança que a gente tem, além de o nome ser parecido, é o fato de sermos negros. A única.

Raoni Ferreira dos Santos, o Gago, suspeito de integrar uma milícia em Duque de Caxias. (Foto: Reprodução/Twitter)

Toda a abordagem foi muito complicada. Os policiais vieram até a minha casa, me perguntaram o meu nome, me mostraram uma foto minha e me levaram à força. Em nenhum momento me pediram meus documentos! Poderia ser qualquer pessoa…

A foto foi retirada da minha carteira de identidade. Provavelmente, eles puxaram o meu nome no sistema do Detran e apareceu aquela foto que usaram para saber quem deveriam buscar. Porém, no inquérito, consta foto de outra pessoa, que foi com quem eles me confundiram. Agora, como eles chegaram até mim, como minha foto apareceu lá para que as testemunhas me identificassem, eu não sei. É o que os advogados estão querendo saber.



Sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Mais uma vez, a esperança de voltar para casa foi frustrada hoje. Meus advogados impetraram uma liminar exigindo a minha soltura. Eles se basearam no fato de que a delegacia deveria ter pedido não a prisão preventiva, de trinta dias, mas a temporária, de cinco. Como foi um erro, minha defesa solicitou que eu fosse libertado, pois já estou há dezoito dias aqui. Mas a liminar não foi acatada.

Não sei por que fui confundido pela polícia. Eu já tinha sofrido preconceito racial antes, mas nada dessa magnitude. A única coisa que temos em comum é a cor da pele, não tem outro motivo. O nome é parecido, mas parece que a pronúncia é diferente (“Raôni” em vez de “Raoní”, como o meu). Meus advogados entraram com um pedido para tentar entender como tudo isso aconteceu e responder a uma simples pergunta: por que eu? Como eles chegaram até mim, se eu nunca tive passagem pela polícia? 

Para ser sincero, eu não acompanhava muito esses casos. Eles eram desconhecidos para mim. Eu não sabia que só o reconhecimento por foto já era o que prendia! Para mim, era aquele reconhecimento pessoal, ao vivo, em que você enfileira as pessoas parecidas com a descrição e pede para as testemunhas identificarem. Eu nem sabia que era possível prender uma pessoa por meio de um reconhecimento por foto. O que eu acho é que é um procedimento extremamente falho, porque fotos são tratadas, podem ser de vários ângulos… é uma imagem que foi tirada em um determinado momento, então pode ser de cinco, dez, vinte anos atrás. É muito falho.



Quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Pelo que os advogados me disseram, parece que minha história hoje saiu na tevê e em sites de notícia. Espero que isso me ajude a sair daqui logo! E também quero que casos como esse não se repitam. Alguns agentes penitenciários já comentaram o caso por aqui e me perguntaram se era eu o cientista de dados. Minha expectativa está enorme. 



Quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Passei a manhã inteira ansioso. Demorou bastante, mas finalmente, às 14 horas, eu fui solto. Meus pais, meu tio, minha esposa, minhas cunhadas, tinha muita gente lá na porta do presídio esperando para me receber. Foi bastante importante para mim encontrar essas pessoas que me apoiaram lá fora.

Raoni abraça a esposa e a mãe na porta do presídio após ser solto. (Foto: Reprodução/Instagram)

Quando cheguei em casa, a primeira coisa que fiz foi descansar. Lá dentro, você não dorme, você cochila. Tomei a segunda dose da vacina, estou matando a saudade de tudo aos poucos. Finalmente pude descansar e agora só quero retomar minha vida.



Terça-feira, 14 de setembro de 2021

Eu não consigo ter paz! Eles erraram de novo. Agora, foi o Tribunal de Justiça do Rio. Hoje, por volta das 20 horas, meus advogados me avisaram que um novo mandado de prisão foi expedido. Desta vez, o documento tinha o nome do suspeito certo, mas o endereço ainda era o da minha casa. Decidi não dormir aqui, porque estou com medo. Estamos falando da Justiça e da polícia brasileiras. Sei que há muitos países piores, mas também há muitos países melhores quando falamos de abordagem policial. E se vierem aqui, perguntando por um Raoni, eu vou dizer que o nome que eles querem não é o meu, e se, nessa discussão, me levarem dizendo “lá você explica”, como foi da outra vez? 



Quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Não dormimos nada essa noite, mas parece que o erro foi corrigido a tempo. A partir do momento em que minha história apareceu na mídia, todos os procedimentos que meus advogados tinham solicitado andaram muito rápido. Como eu não tinha acesso, eu não sei precisar o dia exato, mas, no dia 8 ou 9, a Polícia Civil admitiu que cometeu um erro ao me prender. Isso foi graças às reportagens. Se dependesse da Justiça, eu acho que estaria lá até hoje.

A empresa onde trabalho prevê um período de licença não remunerada. Eles não comentavam meu caso internamente, enquanto ele estava se desenrolando, para me preservar. Me deram todo o apoio que podiam. Graças a Deus, já voltei a trabalhar e aos poucos estou retomando minha rotina como era antes.

Enquanto estive encarcerado injustamente, além de tudo que isso já pressupõe, tive prejuízos também financeiros, já que meu salário foi suspenso durante esse período. Com certeza processarei o Estado por tudo que passei. Falei para os meus advogados: por mim, processamos todo mundo que puder. É um erro, e esse tipo de erro tem que ser exposto, até para proteger outras pessoas. É função da sociedade ajudar a sociedade, e essa é uma forma que tenho de fazê-lo.

Eu, pessoalmente, preferia que as pessoas físicas envolvidas fossem diretamente responsabilizadas. Eu abriria mão de qualquer tipo de indenização para ver os responsáveis por isso serem punidos, mas há todo um trâmite. Agora, a Justiça vai decidir quem tem que responder por isso. Não está mais nas minhas mãos. Só quero viver minha vida normalmente, retomar meus estudos e compromissos e voltar a levá-la do jeito tranquilo que vinha levando.

Foto: Reprodução/ Piauí

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