A vida de milhares é uma incessante corrida da pobreza

Melhores alunos buscam escolas melhores e os mais desfavorecidos sofrem mais

FONTEFolha de São Paulo, por Michael França
O economista Michael França - Foto: Bruno Santos/Folhapress

“Se você tomar banho e esfregar com força, sua cor vai sair”, diziam algumas crianças de pele mais clara para as negras de pele retinta na escola pública da periferia onde eu estudava. Muitas se machucavam com isso. Eu me machuquei.

Minha sensação era que elas usavam a violência como válvula de escape para liberar toda a raiva que sentiam por serem sistematicamente excluídas não só pela sociedade mas, em vários casos, até por suas próprias famílias.

Mudei de escola. Gastava mais tempo pedalando para chegar a uma outra localizada em um bairro melhor. No primeiro dia de aula, um garoto enfiou uma caneta na barriga de outro. Ainda lembro todo aquele sangue. Enquanto ele se dobrava de dor no chão, rapidamente o vermelhão tomou conta da branca camisa escolar.

Também saí dali. Fiz uma prova e ganhei uma bolsa de estudo em uma escola particular para cursar o segundo e o terceiro anos do ensino médio. Não passou muito tempo, alguns alunos e professores começaram a preferir me chamar de “negão” em vez do meu próprio nome.

Apesar disso, lá percebi, pela primeira vez, como alguns aspectos da vida poderiam ser diferentes. Então resolvi estudar para valer. No início, o estudo era apenas uma forma de procurar fugir de um lugar em que eu nunca quis estar.

Anos depois, já na Universidade de São Paulo, comecei a trabalhar como assistente de pesquisa no Insper em um estudo de Naercio Menezes-Filho e Rodrigo Moita intitulado “Running away from the poor: Bolsa Família and stratification across schools”. Estudo que, em certa medida, era um reflexo dessa minha história.

O objetivo era avaliar se o Bolsa Família teve algum efeito na migração dos estudantes. O programa de transferência de renda tinha como uma das condicionantes a matrícula dos filhos dos beneficiados. Isso fez com que milhares de estudantes pobres começassem a frequentar as escolas. Mas, ao mesmo tempo, teve um impacto negativo no desempenho escolar. Assim, os melhores alunos migraram para outras escolas públicas e para escolas particulares.

Enquanto eles migravam, deixavam para trás os mais desfavorecidos e com maiores deficiências de aprendizagem. Estes, por sua vez, perderiam a oportunidade de aprender com os colegas que tinham melhor desempenho. Parte de seu futuro estaria destinada a ser influenciada apenas por professores mal remunerados que precisariam realizar quase um milagre para subverter toda exclusão gerada pela sociedade brasileira.

Em diferentes dimensões, a vida de milhares de compatriotas é marcada por uma incessante corrida da pobreza. Entretanto, enganam-se aqueles que acham que ela é apenas um monopólio dos pobres. Também existe muita pobreza entre os mais ricos. Existe porque pobreza também é sinônimo de carência e privação. E há muita carência em uma parcela de nossas elites em relação às suas visões de mundo. Em parte, isso vem da considerável privação que eles têm de interação com o resto da sociedade.

Tal fato repercute no entendimento da realidade brasileira. O viés racial nas escolas e na sociedade, por exemplo, foi, durante muito tempo, negligenciado. Entretanto, quando olhamos os dados de desempenho escolar, percebemos que faz anos que os negros e, em especial, os pretos, não vão bem.

Quando olho esses dados, lembro toda a violência racial e social que presenciei nas escolas e fora delas. Atualmente, grande parte do meu tempo ainda é dedicado ao estudo. Ele consome parcela expressiva dos meus dias, madrugadas e finais de semanas. Porém, felizmente, estudar não representa mais apenas uma esperança de fuga. Encaro como uma oportunidade de poder contribuir para que outros também consigam progredir e escapar das séries de injustiças às quais estão submetidos.


Este texto é uma homenagem à música “Baltimore”, de Randy Newman, interpretada por Nina Simone.

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