Abismo feminino

FONTEPor Paula Cristina, do IstoÉ
(Ilustração: LINOCA SOUZA)

“O ano passado foi devastador para minha família. Lembrei dos meus tempos de criança, na roça, com alimentação à base de cuscuz e, quando dava, feijão.” Maria Inês da Silva, de 62 anos, é o retrato do que aconteceu no Brasil ano passado com milhões de lares. Morando com suas quatro filhas e três netas em uma casa de 60m2 na periferia de São Paulo, a doméstica viu 75% da renda do lar desaparecer, com ela e três de suas filhas perdendo o emprego. “A única que não perdeu o trabalho teve horário e salário reduzidos”, disse. E a lógica perversa de escolher entre buscar renda e preservar a saúde retrata o que aconteceu no Brasil no último ano. Entre as mulheres, em especial as que são mães, a pandemia do desemprego foi ainda mais cruel, fazendo o nível de empregabilidade feminina retroceder 30 anos e voltar ao patamar de 1990, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na prática, 8,5 milhões de mulheres deixaram seus trabalhos em 2020, e as perspectivas para 2021 não são as mais animadoras.

45% Da força de trabalho do País estava ocupada por mulheres ao fim de 2020.

Os motivos são muitos para essa evasão. O primeiro deles é que as mulheres são grande maioria nos setores mais afetados pela pandemia (como restaurantes, hotelaria, salões de beleza). Também recai majoritariamente nos ombros femininos a responsabilidade de zelar pelo cuidado, e agora educação, dos filhos. Com essa dinâmica, o resultado foi a queda de 7,5 pontos porcentuais da participação das mulheres no universo do emprego, passando de 53,3% em 2019 para 45,8% ao fim do ano passado. Resultado que só não foi tão baixo quanto o da era Collor, quando 44,2% da força de trabalho era ocupada por mulheres. Diante desses dados, a pesquisadora do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da FEA-USP Lygia Sabbag Fares entende que o Poder Público falha em não entender as políticas de auxílio e suporte à população sob a óptica do gênero. De acordo com ela, o auxílio emergencial ajudou a amenizar a retração da economia e garantiu recursos para uma camada da população que teria menos espaço de recolocação no mercado de trabalho.

8,5 Milhões de mulheres perderam emprego ano passado.

Assim, diz a pesquisadora, é essencial a manutenção do programa de transferência de renda. “Caso contrário, os efeitos da retração econômica sobre a população vulnerável, especialmente as mulheres negras, serão enormes.” Segundo o estudo da FEA, também é primordial que o governo tome medidas que ajudem diretamente no fomento do empreendedorismo feminino, com linhas de crédito e leis de proteção social para que as mulheres se reestruturem. Segundo a pesquisa, com o auxílio, as mulheres negras conseguiram, segundo a PNAD-Covid, elevar sua renda média. Os dados apontam que os recursos médios de um lar chefiado por uma mulher negra foram de R$ 728 ao mês no período do auxílio, valor superior à média de antes da pandemia, que girava em torno de R$ 632 mensais.

632 reais é renda média de um lar chefiado por uma mulher negra.

Para Joanna Burigo, mestre em gênero, mídia e cultura pela London School of Economics (LSE) e fundadora da Casa da Mãe Joanna, a pandemia evidenciou toda pressão (física, de força de trabalho e mental) que as mulheres carregam na busca por igualdade. “A pandemia expôs uma problemática que requer medidas de urgência e organização institucional”, afirmou. “Nesse sentido, ela acentua diferenças que já existiam na sociedade, mas que estávamos acostumados a naturalizar.” Essa pressão, definida como “devastadora” por Maria Inês, envolve ver sua renda minguar, os netos deixarem de almoçar na escola, suas filhas buscarem por subempregos enquanto ela equilibra, dentro do lar, o medo da Covid e o temor da fome.

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