Acosta Martínez, você e eu, em suspeição de cor

FONTEJustificando, por Edinaldo César Santos Junior
Edinaldo César Santos Junior é juiz de direito em Sergipe e mestre em Direitos Humanos pela USP (Arquivo Pessoal)

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) publicou, em 31 de agosto de 2020, sentença de mérito no Caso Acosta Martínez e outros versus Argentina. Pela primeira vez, o tribunal interamericano analisa de forma mais aprofundada a questão do racismo estrutural e institucional nas Américas, a partir do contexto de discriminação racial na Argentina¹. 

Em 1982, os irmãos José Delfín e Ángel Acosta Martínez, afro-uruguaios, migraram para a Argentina e lá fundaram um Grupo Cultural dedicado à difusão da cultura africana e à luta contra a discriminação racial. José Delfín (Acosta Martínez), a partir desse olhar de ativista e de consciência racial, decidiu intervir numa abordagem policial, que, por perfilamento racial, detivera ilegalmente dois jovens afro-brasileiros (os irmãos Gonçalves da Luz), na saída de uma discoteca, em 5 de abril de 1996. A polícia teria recebido uma denúncia anônima de que no local se encontrava uma pessoa armada, que estava provocando perturbação.

Em razão dessa abordagem, o ativista afro-uruguaio Acosta Martínez, alegando que os policiais “somente os prenderam por serem negros”, acabou sendo detido também e assassinado pela polícia da cidade de Buenos Aires. A Corte entendeu que a detenção de Acosta foi arbitrária, tendo atuado os policiais movidos mais por um perfil racial, que por uma verdadeira suspeição de ilicitude.

Os fatos relatados na sentença demonstram um contexto de discriminação racial aliado à violência policial baseada em detenções para averiguação, utilizando-se de perfis raciais ou perfilamento racial (racial profiling), “um processo pelo qual as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade ao invés de evidências objetivas ou no comportamento de um indivíduo. Ademais disso, a decisão dá conta também da existência da invisibilidade da população negra na Argentina somada a uma imagem negativa, que mantém um racismo estrutural funcionando no país. O Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI) elaborou um mapa da discriminação, o qual constatou que 38% das pessoas entrevistadas em 2014 admitiram ter aversão às pessoas de ascendência africana, mas somente 3% reconheceu que este grupo era o mais afetado pela discriminação racial. De outro lado, 61% dos negros entrevistados reconheceram ter sido vítimas de racismo. É o racismo sem racistas ou, ainda, racistas sem racismo.

A decisão da Corte traz à luz uma luta por justiça que dura mais de 24 anos, num caso ainda sem solução em terras portenhas. E é exatamente no contexto da falha dos mecanismos nacionais que os sistemas supranacionais, como o interamericano, são chamados a agir, atuando sempre de maneira subsidiária, complementar e ampliativa da proteção devida às vítimas, consideradas sujeitos de direito internacional. No Caso Acosta Martínez, a Argentina reconheceu a sua responsabilidade perante a Corte Interamericana, admitindo ter violado, em relação a José Delfín, os direitos à vida, à integridade, à liberdade pessoal e à igualdade e não discriminação (arts.  4.1,  5.1, 7.1, 1.1 e 24 da CADH). Entretanto, o reconhecimento é apenas o primeiro passo para as transformações necessárias no cotidiano da população negra nas Américas. Na sentença, a Corte determinou, como medida de não repetição, que a Argentina promova cursos de capacitação para a polícia sobre o tema da discriminação racial e a sensibilização sobre o uso dos perfis raciais. Cerca de 200 mil dólares foi a quantia fixada para a família da vítima, a título de indenização por dano material, imaterial, despesas e custas processuais.

A utilização do perfilamento racial não é um “privilégio” argentino. As vozes negras no Brasil têm clamado incansavelmente pela mudança da sua realidade nas abordagens policiais. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, na busca por comprovar a existência de viés racial na taxa de mortalidade das pessoas negras no Brasil, elenca estudos (Sinhoretto et al, 2014; Schlittler, 2016) que confirmam “que a ação policial opera mecanismos de filtragem racial na prática da fundada suspeita, que invariavelmente remete a um grupo social específico, de faixa etária jovem e pertencimento territorial que remetem aos signos da cultura negra, operando a criminalização dos códigos da periferia e da juventude negra”. Os números não mentem: 79,1% das vítimas de intervenções policiais que resultaram em morte em 2018 eram pretas e pardas. Essa mortalidade entre pessoas negras é 183,2% superior à taxa verificada entre brancos, o que indica a sobrerrepresentação de negros entre as vítimas da letalidade policial.

Estar como magistrado não me blinda de ser confundido em minhas intenções e acerca do meu lugar social, mesmo que meu comportamento não possa ser objetivamente indicado como suspeito. Abordagens em shoppings, farmácias ou supermercados nunca cessam. Convivo com olhares e silêncios, que são racismos também, e que questionam o meu lugar (ou não-lugar) na sociedade. Parafraseando Frantz Fanon, ao primeiro olhar branco, senti o peso da minha melanina. Não foram poucas as vezes que temi por minha vida preta que, associada a todos os estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre o grupo racial a que pertenço, me faz um alvo constante de uma desconfiança que pode ser fatal. A suspeição é (in)fundada em minha cor.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) vem condenando há muitos anos o racismo institucional no Brasil, evidenciado pelo uso de perfis raciais, pela persecução policial seletiva de pessoas negras, bem como pela presença majoritária no sistema carcerário. Para a CIDH, o racismo policial (ela utiliza essa expressão) ocorre num contexto de impunidade histórica e insuficiente responsabilização das práticas de abuso, tanto pelo sistema de justiça criminal quanto pelas próprias instituições policiais .

A eliminação da discriminação racial é uma exigência das convenções internacionais de direitos humanos das quais os diversos países americanos são parte. O controle de convencionalidade² surge como uma das possibilidades de atuação para as mudanças estruturais desde os órgãos policiais ao Supremo Tribunal Federal. Desde 2011, no Caso Gelman versus Uruguai, a CorteIDH entende que todos os órgãos do Estado, incluídos os juízes, têm a obrigação de exercer o controle de convencionalidade, devendo levar em conta não somente os tratados, mas também a jurisprudência da Corte, intérprete última da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Casos como o de Acosta Martínez vs. Argentina (2020) podem e devem ser utilizados para a construção de um novo patamar de direitos nas relações raciais brasileiras.

Não importa se na Argentina ou no Brasil; se somos negros, como Acosta Martínez, você e eu teremos em comum a suspeição da cor. A sociedade e, em especial, nós do sistema de justiça precisamos ter um olhar diferenciado acerca de nossas condutas, que podem perenizar o racismo. Cada um de nós poderá transformar realidades, naquilo que for cabível, seja através da denúncia do malfeito, do ingresso das ações judiciais cabíveis, ou, ainda, pelo julgamento adequado das demandas, utilizadas as lentes do letramento racial.

Por fim, trago a reflexão de Barack Obama, gravada nas paredes do Museu da Cultura Afro-americana de Washington: A mudança não chegará se esperamos outra pessoa ou outro tempo. Somos nós mesmos os que estávamos esperando. Somos a mudança que buscamos”.

 

Edinaldo César Santos Junior é juiz de direito em Sergipe e mestre em Direitos Humanos pela USP.
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