Adaptação às mudanças climáticas em territórios negros é política de reparação

PNA que inclua ações antirracistas e populações vulnerabilizadas é para ontem

FONTEFolha de São Paulo, por Mariana Belmont, Igor Travassos e Anne Heloise
Bairro Jardim Monteverde, em Recife, onde houve mortes por causa das chuvas de maio e junho de 2022 - Leo Caldas

“Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” – Carolina Maria de Jesus

O trecho acima, retirado do livro “Quarto de Despejo”, traduz a realidade não só da favela do Canindé, na cidade de São Paulo dos anos 60, mas de diversas periferias dos grandes centros urbanos do país hoje.

Apesar de o movimento de valorização da favela e das periferias ter crescido desde o início dos anos 2000, permaneceu a “política do deixar morrer” nos territórios que são majoritariamente ocupados por pessoas negras. Nesse contexto, a ausência do Estado diante de eventos climáticos extremos é, na verdade, mais um instrumento da política de genocídio da população negra. Ou seja, nada mais é do que racismo ambiental.

O estudo “Uma Tragédia Anunciada: Dossiê Popular sobre a Negligência do Poder Público e os Impactos das Chuvas no Recife e Região Metropolitana“, elaborado por organizações da sociedade civil do estado de Pernambuco, aponta que 94% dos territórios atingidos pelas chuvas extremas de 2022, onde houve 140 mortes e mais de 80 mil desabrigados e desalojados, estão inseridos em setores censitários nos quais mais de 30% dos residentes são mulheres negras.

Ao não estabelecer uma política habitacional destinada à garantia do direito à habitação digna para a população negra e periférica, há uma escolha política por parte do Estado brasileiro de manter esse segmento social em situação de vulnerabilidade, aprofundando assim as desigualdades e dando continuidade às violações de direitos. Assim, eventos climáticos extremos tornam-se estopim para a interrupção de projetos de vida.

O Brasil foi o país das Américas no qual mais pessoas tiveram de deixar suas casas no último ano devido a episódios de violência e de eventos climáticos extremos, mostra relatório anual do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno, divulgado na última semana. Segundo o estudo, mais de 713 mil brasileiros tiveram que deixar suas casas para não perder suas vidas. Desses, ao menos 708 mil o fizeram por razões ligadas a desastres climáticos —o maior número em dez anos.

Uma comitiva de diversas organizações ambientalistas e do movimento negro, assim como ativistas climáticos e militantes em defesa de uma agenda ambiental antirracista e dos direitos humanos, esteve no último dia 26 em Brasília, com Ana Toni, secretária de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

No encontro, sublinhou-se a urgência da criação de um novo Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas (PNA), uma vez que o anterior completou sete anos de criação e três de vencimento. Nesse período, pouco se fez, e o resultado desse descaso pode ser percebido na falta de capacidade das cidades brasileiras para lidar com as chuvas extremas.

Cobrou-se, portanto, a reestruturação do PNA, com ampliação da participação social tanto na etapa de coleta de insumos quanto em sua implementação, monitoramento e avaliação. Para as organizações e ativistas presentes, esse novo plano deve garantir uma abordagem sistêmica, de longo prazo, das ações de prevenção, mitigação, preparação, reparação, resposta e recuperação de desastres. Não é mais aceitável que haja mobilização somente nos momentos de tragédia. Políticas públicas de adaptação também devem ser tratadas como prioridade no orçamento.

E essas políticas de adaptação climática precisam, por sua vez, priorizar as áreas que estão em risco, considerar conhecimentos e soluções gerados a partir dos territórios e fatores de perdas e danos para os grupos afetados, além de promover ações que priorizem os direitos humanos.

Como bem pontua Nilma Bentes, ativista da Coalizão Negra por Direitos e do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, a população periférica, de maioria negra, é submetida de forma compulsória e perversa à vulnerabilização de sua própria vida. Em defesa da vida das pessoas e dos territórios, é preciso promover medidas antirracistas de resiliência e de sustentabilidade interconectadas com os demais direitos humanos, como o direito à saúde, à moradia e à educação, tanto nas cidades quanto no campo e nas florestas.

O atual governo sinaliza constantemente a importância de combater a crise climática. A pauta da adaptação ainda é o grande patinho feio dessa agenda, mas precisa ser encarada como uma urgência nacional, que merece atenção especial, pois materializa o conjunto de ações a serem tomadas para garantir a vida de toda a população, em especial das pessoas mais impactadas pelos eventos climáticos extremos.

Com políticas públicas efetivas de adaptação, quem sabe o retrato da favela do Canindé na São Paulo dos anos 60 não continue sendo uma realidade —realidade que, na verdade, se mantém desde a tão prometida abolição.

Isso é reparação.


Mariana Belmont

Jornalista, diretora de Clima e Cidade no Instituto de Referência Negra Peregum

Igor Travassos

Comunicador, ativista do movimento negro e integrante da Articulação Negra de Pernambuco e da Coalizão Negra por Direitos

Anne Heloise

Advogada, mestranda em direito pela Universidade Federal de Pernambuco, ativista e assessora de justiça climática do Instituto Marielle Franco

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