Adriana Meireles Melonio: Babaçu, identidade e magistratura

FONTEPor Adriana Meireles Melonio, do Justificando
Adriana Meireles Melonio (Foto: Arquivo Pessoal)

Meus pais são migrantes nordestinos. Chegaram ao Rio de Janeiro no início dos anos 70, trazendo como bagagem um garfo, uma faca e uma esteira, além do sonho de construir uma vida melhor que aquela que tinham no interior do Maranhão. Ante a escassez de recursos na cidade grande, passaram-se muitos anos sem que pudessem retornar à terra natal. E foi por isso que cresci sem meus avós por perto.

Já se passaram mais de quarenta anos de quando aqui se estabeleceram. Nos últimos dias, aproveitando o recesso das festas de fim de ano, peguei-me observando meu pai: sentado na soleira da porta da cozinha de nossa casa, descascava uma laranja. Retirava a casca sem quebrá-la e a visão daquela espiral inteira, mas imperfeita, ora mais grossa, ora quase por um fio, fez-me pensar nos caminhos percorridos por meus ancestrais, para que eu pudesse hoje ser uma juíza.

Inundada por aquela imagem, lembrei-me de uma das minhas avós. Seu nome era Esterlina Lídia. Esterlina significa “forte”, “duro”, “indestrutível”. Lídia significa “trabalho árduo”. Seu nome parece ter determinado seu destino, pois a Dona “Istulina”, como era conhecida entre parentes e vizinhos, foi uma mulher incansável, como tantas outras mães pretas.

Era quebradeira de coco babaçu. Passava o dia coletando os frutos, quebrando-os ao meio para extrair suas amêndoas, das quais se extrai óleo precioso e de usos múltiplos. Coletava cerca de 10 quilos por dia, vendidos a preços baixíssimos a atravessadores e, com os parcos valores, comprava açúcar, farinha, café, arroz e outros alimentos. A carne era de pequenos animais e aves caçados por ela ou por seus “pequenos”. Peixes miúdos como cascudos e bagrinhos eram a alimentação de suas onze crianças, criadas praticamente sozinhas por ela.

Ainda vendo meu pai na soleira da porta, penso o quão pouco eu sabia de minha avó até pouco tempo atrás. O ingresso na magistratura fez nascer não somente a juíza, mas floresceu a mulher negra escondida dentro do meu peito. E na busca pelo meu lugar no mundo, entendi que esse encontro passaria necessariamente pelo encontro com minha ancestralidade.

Perseguindo os galhos mais altos de minha árvore genealógica, descobri que Esterlina era filha de Catarina e Ladislau. Seus irmãos eram Joana, Raimundo (apelidado Cabelo Velho, por desde jovem ter os cabelos grisalhos), além de Paulo, Antônio e Amadeu. Catarina e Ladislau eram netos de escravizados. E o conhecimento da história familiar paterna só chega até este ponto.

Conversando recentemente com um amigo, eu disse que tinha dúvidas acerca da origem do sobrenome Melonio, herdado de minha avó paterna. Ao contrário de descendentes de europeus, que conseguem afirmar se tem ascendência italiana, portuguesa ou alemã, por exemplo, raramente um descendente de escravizados no Brasil consegue ter acesso à sua origem desde África.

Estudos da história da escravidão no Brasil revelam que após a chegada às terras brasileiras, à exceção de mulheres acompanhadas de recém-nascidos, as famílias de africanos eram propositalmente separadas. Além disso, eram batizados e recebiam um nome cristão, enquanto o sobrenome se relacionava ao porto africano onde haviam sido embarcados ou ao sobrenome de seus proprietários. Estes violentos rituais simbólicos marcaram a vida dos recém chegados, que perderam sua liberdade, tiveram suas famílias esfaceladas, seus costumes e língua desprezados, seus nomes originais ignorados e por fim, se tornaram escravos.

Mas tal violência não foi suficiente. Por meio de despacho de 14 de dezembro de 1890, o Ministro Ruy Barbosa determinou a destruição de todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda. O intuito desta determinação, segundo o Ministro, era “destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira”.

No entanto, seu intuito principal foi evitar pedidos indenizatórios por parte de ex-proprietários de cativos, mas também apagar os rastros da entrada ilegal de escravos, proibida desde a Lei Feijó. Vigente desde 1831, a norma sistematicamente desprezada proibia a importação de escravizados para o Brasil, além de declarar livres todos aqueles trazidos para terras brasileiras.

Deste modo perdemos o acesso às nossas origens, às nossas heranças culturais. Sofremos um apagamento histórico e um silenciamento de nosso discurso identitário.

Esterlina criou onze filhos. Às vezes me surpreendo imaginando o que se pensava em sua mente enquanto quebrava cada um daqueles cocos com suas mãos pequenas, mas fortes e ágeis. Em algumas ocasiões acho que não pensava, apenas quebrava, quebrava e quebrava, pois a fome e a necessidade tem o poder de entorpecer nossos sonhos e nos fazer apenas idealizar a próxima refeição ou no máximo, a do dia seguinte. Em outras vezes, imagino que pela força da sabedoria das mulheres negras, ela tinha a consciência de que seu sacrifício faria com que sua gente tivesse uma vida melhor que a por ela vivida.

Tornei-me Juíza do Trabalho há cinco anos. A magistratura é um lugar de poder estatal de forte cunho material e simbólico, em que a presença de corpos negros ainda não é natural. Mulheres negras, segundo a Pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil de 2019, continuam na base da pirâmide da desigualdade de renda, recebendo salários inferiores aos percebidos homens negros e correspondentes a 44% do salário recebido por homens brancos.

No entanto, ainda que o cenário não seja o mais auspicioso para a população negra brasileira, percebo que estamos despertando, deixando de ser objetos para nos tornarmos sujeitos de nossa própria história. Nas palavras de Neusa Souza: vivendo a experiência de nos comprometermos em resgatar nossa história e em recriar-nos em nossas potencialidades.

Hoje posso dar visibilidade à história de minha avó. Posso dar volume à sua voz por tantos anos silenciada. No caminho pela Justiça, piso em cima de suas pegadas, perseguindo orgulhá-la todos os dias.

No ano de 2009 minha avó se tornou uma ancestral, aos 93 anos. Não pode contemplar a neta tornar-se juíza e preta ao mesmo tempo. Em 2017 estive, junto com meu pai, no Cemitério da Vila Nova, no interior do Maranhão para visitar seu túmulo. Também passei por lugares onde viveu e tentei quebrar alguns cocos, talvez tentando aproximar-me dela de algum modo. Demorei mais de quinze minutos a bater, sem romper um único fruto e tudo o que consegui foi um dedo quase quebrado. Ao ver meu insucesso, entendi que aquelas mãos pretas se machucaram durante toda a vida sem cogitar a dor, a opressão e a pobreza.

O tempo e a distância não permitiram que convivêssemos fisicamente. Não pude ter meus cabelos trançados por suas mãos nodosas, as quais eu tanto gostaria de beijar ao pedir a bênção. Não pude ouvir suas histórias, mas gosto de saber que dela herdei a risada farta e uma vontade de viver que beira à teimosia.

O sangue e a coragem de Esterlina Lídia correm e pulsam em minhas veias. E em cada decisão, cada assinatura em busca pelo justo, está a marca do seu nome que jamais será esquecido pelos que dela foram gerados.

Hoje, no exercício da minha carreira reencontro com minha avó em cada reclamante, idosa negra de cabelos crespos e grisalhos, que olha para mim visivelmente surpresa, emocionada e diz: “meu Deus! A juíza é da minha cor. Eu não sabia que tinha juiz preto, Doutora”.

Meu olhar se encontra com o seu, em um sorriso de ancestralidade e sororidade, que só as mulheres pretas conseguem significar.

Nelas vejo não apenas a minha mais velha, mas todas aquelas mulheres negras desde África que deram seu sangue e sua alma para que eu pudesse estar aqui.

Adriana Meireles Melonio é juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região
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