Afetividades na margem e preterimento da bicha preta

FONTEPor Robson Souza, enviado para o Portal Geledés
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A homossexualidade em sociedades conservadoras e violentas quanto a nossa, é definida e catalogada como algo que foge a normatividade e isto por si só implica numa série de barreiras aos indivíduos que não se submetem aos padrões sociais e vivem suas vidas em desacordo com o que nos é constantemente imposto. Estar a margem da sociedade é algo com que nos habituamos desde muito cedo, e entre nós a ideia de universalidade é também colocada à prova quando nos deparamos com diferentes atravessamentos que compõe a nossa totalidade. Pensemos o gay negro!

Este por sua vez, tem suas experiências sobrecarregadas pelo fator racial. Sexualidade e raça se somam reconfigurando as formas com que iremos participar das dinâmicas sociais, aos sermos imediatamente (re)colocados em uma margem dentro da própria margem da qual já nos encontramos. Violência, rejeição, isolamento, etc., fazem parte dessa normalidade, somos dupla ou triplamente marginalizados, é como dizem por aí: “além de gay, é preto”. A fala racista que muitos de nós já ouvimos, evidencia a carga extra de dificuldades que nós teremos de enfrentar pela frente.

A par dos desafios em ter de lidar com a soma das duas opressões e dos efeitos causados em diferentes áreas da nossa vida, pretendo tratar sobre apenas uma delas, a que se refere aos afetos. O campo das relações e afetos para aqueles sujeitos que se localizam nas margens tem sido desde sempre bastante conflituoso. Quando não estão sendo submetidos a tentativas de invizibilização, seja sendo tratados como patologias e anormalidades ou então tornando-se alvos de violentos ataques e humilhações por parte daqueles que se intitulam a norma vigente. 

Logo que me propus a refletir sobre este assunto tenho enfrentado uma série de desafios que passam pela escassez de materiais para estudo, até o questionamento por mim mesmo, do quão legitimo e necessário seria tratar deste tema. Tanto as ausências de materiais quanto as minhas próprias dúvidas, demostram o quanto o nosso imaginário é por vezes atravessado por uma visão racista e excludente que estabelece até que ponto podemos falar e sobre o que falar. 

E é com esta incerteza que eu faço a minha primeira provocação; seriamos nós, gays pretos menos merecedores de afetos? O amor é algo tão improvável para nós a ponto de poder ser totalmente deixado de lado? Entender que indivíduos que partem de pontos e realidades diferentes uns dos outros, e por consequência terão experiências e demandas totalmente distintas, é algo importante para seguirmos com a leitura.

Sendo assim, a realidade do gay negro terá de ser analisada sob a perspectiva da raça, já que não estamos livres do processo de racialização que faz com que ocupemos lugares de subalternidade em detrimento do gay não negro. Ao falar sobre afetividade, não tenho como objetivo fazer a defesa de uma concepção de amor romântica, idealizada e burguesa como tem sido amplamente difundida pela sociedade capitalista e patriarcal, apenas apontar as especificidades e emaranhados das nossas próprias relações.

Discutir raça e racismos continua sendo algo problemático e doloroso principalmente, quando discursos que negam a existência do racismo no país têm reverberado com intensidade entre os espaços de poder. Ainda que inúmeros casos de violência racial, dia sim, dia não, alcancem visibilidade nacional. Negar a obviedade do racismo foi o jeitinho brasileiro encontrado para não resolver este grave problema que compõe a estrutura da nossa sociedade, e de assegurar uma série de vantagens. Quando falamos em racismo estrutural, estamos dizendo que a complexidade do racismo extrapola as experiências individuais e penetram até as entranhas do tecido social criando uma verdadeira aberração da qual muitos seguem ignorando, mas que é chegada a hora de encara-la mais de perto. 

Se a norma se estabeleceu como branca, seremos de alguma forma induzidos a aprecia-la e buscar meios de se aproximar dela. Gostos, desejos, afetos e afins serão constituídos por, e para garantir a manutenção de privilégios daqueles que pertencem a este grupo, no caso, a hegemonia branca. Para isso, cria-se signos e símbolos que funcionarão como meio de ingresso dando direito e acesso a espaços e relações distintas, instituindo uma clara separação entre negros e não negros. 

É preciso ter em mente que nossos desejos são construídos culturalmente e em certa medida serão produtos das nossas relações sociais, reforçando a hipótese de que ao buscarmos com frequência pelo ideal estabelecido pela normatividade, aqueles que se encontram fora desta lógica, porque são marcados como inferiores, serão deixados de lado tendo que disputar pelos afetos numa condição de desigualdade. As inter-relações vivenciadas pelos homossexuais negros serão limitadas e suas chances na dinâmica dos afetos serão restringidas e por várias vezes nos situaremos num local de espera permanente, visto que o ideal a ser alcançado é sempre o branco.

 As discussões que feministas negras têm feito acerca da solidão afetiva enfrentadas por elas, pode ser aqui adaptada para a nossa realidade, já que compartilhamos de algumas dessas mesmas opressões. A solidão a que me refiro é fruto tanto da rejeição e isolamento por parte de homossexuais brancos que estão buscando por iguais no campo dos relacionamentos e contraditoriamente por outros homossexuais negros que vem na possibilidade de se relacionarem com a branquitude sua chance de aceitação e maior mobilidade social já que “de preto basta eu”, além da hipersexualização a qual corpos negros são constantemente submetidos fazendo com que nos procurem apenas para fins sexuais.

O tamanho de nossos paus, nosso desempenho durante o sexo assim como a nossa posição sexual, torna-se frequentemente objetos do interesse alheio e nesse jogo de poder, fetichização, hipersexualização e subalternidade se encontram retirando de nós qualquer sentimento e possibilidade de humanidade. A coisificação se torna meio e fim em muitas de nossas experiências. 

Quando da nossa não correspondência ou sujeição das expectativas da branquitude, somos colocados numa posição de imobilidade, o amor aqui também é imóvel. Ao recusar a lógica da objetificação que nos desumaniza teremos de lidar mais uma vez com a solidão, seja afetiva ou sexual, gerando em nós novas frustrações pois mais uma vez temos nossas escolhas diretamente condicionadas aos desejos de homossexuais brancos. As possibilidades de relacionamentos que surgem vêm carregadas de violências simbólicas, e constantes apagamentos na qual minha subjetividade tem de ser controlada pelo outro, e nesse processo, existir só é possível desde que eu não exista.

Não estou dizendo que com isso estamos totalmente impossibilitados de desejar e fazermos escolhas livres da influência da branquitude, mas que as mesmas são adaptadas para o tipo de socialização que estamos submetidos e mais uma vez a imposição de padrões tem sido cruel para aqueles que são marginalizados. Por conta disso, as experiências que se dão dentro de uma estrutura racista reforçam em nós a ideia de não pertencimento, pensar em construir algo, uma relação afetiva saudável seja ela com negros ou não negros, tem sido algo bastante improvável e negado entre nós e que dramaticamente se confirma em nossas experiências de preterimento.

Este amplo regime de segregação continua demarcando até onde corpos pretos podem ou não estar e na área da afetividade isto não tem sido uma exceção, muito pelo contrário, o processo de higienização parece vigorar ainda nos dias de hoje. Somos uma possibilidade desde que homossexuais brancos estabeleçam quando e em quais condições, e este movimento de dependência e deslocamento entre margem e centro tem nos causado uma sucessão de conflitos como baixa autoestima, isolamento e insegurança acompanhada de crises como resposta a tantas violências que se repetem com certa regularidade.

Muitas vezes o lugar do sexo vai se tornando nossas únicas “oportunidades” de existência nessas relações, e ao nos organizarmos a partir desta lógica desempenhando os papeis sociais reservados a nós, confirmamos a visão estereotipada e preconceituosa com que somos lidos, como meros objetos sexuais, enquanto que gays brancos são inevitavelmente “para casar”, “se relacionar” ou para “construir algo sério”. Devemos questionar estes padrões não nos submetendo a relacionamentos impostos pela branquitude ou quem quer que seja, em que nossa existência precisa ser negada contribuindo sistematicamente com o controle e destruição de nossas subjetividades.

Os vínculos de afetos e prazeres que se firmam neste contexto são constituídos por hierarquias, e geralmente por acordos desiguais da qual o ônus da coisa é sempre deixado para nós, tanto que é necessário que eu enquanto sujeito gay e negro entenda e aponte até onde o racismo pode ser percebido em nossas relações. Pensar a si mesmo parece tarefa exclusiva de indivíduos em condições de vulnerabilidade, e ao ocupar um lugar de vantagem dentro desta estrutura, gays brancos não precisam repensar alguns de seus privilégios muito menos suas práticas opressoras.

Ao fazer uma análise mais crítica e minuciosa das poucas experiências em relacionamentos que tive, é impossível dizer que não fui racializado e do quanto estas vivencias carregam o peso do racismo. Jogar luz sobre algo tão delicado não pode em hipótese alguma ser entendido como mera acusação ou simples queixa por relacionamentos opressivos e fracassados, constituídos sobre bases assimétricas na qual estive sempre em posição de desvantagem. Apontar o racismo presente em experiências traumáticas é o primeiro passo para estremecer uma estrutura que tem nos violentado desde a sua constituição e este processo inclui causar tensões e desconfortos naqueles que nos oprimem.

É sobre como nós nos sentimos e vivenciamos tais relações, e quais estratégias teremos que criar daqui pra frente para superar e lidar com algo que tem servido para a nossa desumanização. Se para muitos ser acusado de ser racista possa ser algo horrível (o que de fato é), para as vítimas do racismo o impacto destas violências tem causado uma infinidade de prejuízos, dos quais superaremos apenas quando passarmos por um processo de reestruturação social em que o negro não seja submetido a um processo de inferiorização e subjugação da forma como infelizmente ainda vemos nos dias de hoje.  

Este texto não é sobre o fato de que gays negros não sabem lidar com a solidão ou querem a qualquer custo se relacionar e participar das dinâmicas dos afetos. Mas é fundamental que contestemos esta norma que nos mantem isolados e na margem, e desta negação ao nosso direito de nos envolvermos afetivamente. Eu quero sim reivindicar meu direito de amar e ser amado, de poder escolher quais lugares eu quero estar, de rejeitar as migalhas afetivas que tenho recebido, mas sem que isso signifique ainda mais isolamento. Quero poder construir uma autoestima plena e que a cor da minha pele não estabeleça o meu valor, muito menos indique que a margem é meu lugar neste mundo. O que mais teremos de abrir mão para que nossa desumanização seja completa?

Significa então ser urgente romper com a norma branca e com qualquer outra estrutura que seja baseada em hierarquias que privilegie algum grupo em detrimento do sofrimento e da destruição de outro. Somente quando nos propormos a ultrapassar as fronteiras que o racismo estabelece em todas as instancias da vida humana, através de um enfrentamento real e sistêmico, não nos limitando apenas a um “combate” vazio nas redes sociais, e sendo verdadeiramente antirracistas nas nossas praticas diárias. Além disso, ter em mente que a superação do racismo só será possível quando todos nós, COLETIVAMENTE, e isto envolve a participação ativa da branquitude, passarmos por um completo processo de descolonização da nossa mentalidade racista e o mais importante, de atacarmos o racismo em sua raiz, o sistema capitalista.

 

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