Como praticamente todos os leitores já devem saber, está acontecendo na internet uma enquete no Site da Câmara dos deputados sobre o que a população entende como família. A pergunta da enquete é bem direta, “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” e quando redigi esse texto, contava com mais de quatro milhões de votos, sendo aproximadamente 52% deles contra essa definição, que exclui não apenas casais homoafetivos, mas também pais e mães solteiros. O conceito de família do Estatuto não é apenas discriminatório contra a população homoafetiva, é retrógrado a ponto de ser contra o divórcio.
Por: Daniel Murata no, Brasil Post
Mas afinal de contas, para que serve a ideia de família? Uma primeira resposta é apontar como o instituto da família tem uma função – na nossa sociedade – de reproduzir a própria sociedade. Isso é mais ou menos tornado claro por regras de direito de família, como obrigações parentais, heranças, formas de casamento e divórcio. No entanto, gostaria de argumentar, achar que só sobrevivemos “por causa da família” é ingênuo, é não perceber como muitas outras formas de interação humana são relevantes para dar sentido a nossas próprias vidas.
Notem que o parágrafo anterior trabalha com o conceito “padrão” de família, o conceito do projeto do Estatuto da Família (aliás, parêntese jurídico: nem mesmo o direito de família considera ser família só o núcleo homem-mulher, ou seja, o Estatuto é um retrocesso jurídico). A ideia de família como união homem-mulher não tem mais a primazia de que gozava no passado na sociedade, nas formas com as quais nos relacionamos uns com os outros. É – a meu ver – uma ideia anacrônica que nega a pluralidade humana em formas de se viver.
Meu argumento central: laurear certa relação humana com proteção a mais, meramente por ser tradicional, não faz sentido algum em um Estado que se pretenda democrático, plural e laico. É possível inclusive argumentar que a concepção tradicional de família é meramente contingencial: sociedades diferentes em momentos diferentes apresentam modos familiares diversos. Por que achar que um deles merece proteção a mais no Brasil? Tendo isso em vista, estamos em um ponto no qual podemos fazer duas coisas, como explico abaixo.
A primeira possibilidade que temos é expandir o conceito de família para englobar mais formas de relacionamentos humanos, como o direito de família lentamente tem feito ao considerar famílias compostas por pais solteiros ou, mais recentemente, a expansão desse ramo do direito para proteger uniões homoafetivas. A segunda possibilidade é questionar qual é – afinal – a utilidade do conceito de família, principalmente em relação à proteção concedida pelo Estado. Quando expandimos a proteção dada à família para alguns grupos, outros continuam excluídos. Por exemplo, continua nas margens do direito a situação de relações poligâmicas. Isso significa dizer que sem uma problematização e um questionamento sincero do papel que a ideia de família desempenha na sociedade, vamos continuar a oprimir determinadas pessoas, mesmo quando garantimos direitos a outras [1].
As duas possibilidades, ressalto, não são mutuamente excludentes. Podemos estrategicamente adotar a primeira, visando com isso garantir imediatamente uma proteção a grupos minoritários que sofrem riscos de perder seus direitos nas mãos de eventuais grupos opressores. Ao mesmo tempo, podemos adotar a segunda possibilidade, nos questionando qual é a função que o conceito de família exerce na sociedade, de maneira mais ampla. Em outras palavras, podemos e devemos – se formos sinceros com os ideais do Estado Democrático de Direito – nos posicionar contra a definição do Estatuto da Família, mas também temos a obrigação de nos perguntar qual papel exercem nossos conceitos enquanto formas de opressão.
[1] Esse ponto é constantemente destacado por acadêmicos e militantes feministas e LGBTTT, por exemplo. Não faço uso de nenhuma teoria específica nesse artigo, apenas da ideia geral.