Afinal, quem tem medo do feminismo negro?

Victor Moriyama/Getty Images News/Getty Images

“Me descobrir racista e racializar as questões de gênero e classe foi o que mudou minha relação com o feminismo.”

Por Tayná Leite, do   HuffPost Brasil

Foto: Victor Moriyama/Getty Images News/Getty Images

Eu me descobri feminista em 2012, me assumi como tal no início de 2013 e mergulhei profundamente em estudos de gênero e a partir de 2014. Criei um grupo de leituras e estudos para ter ajuda neste processo de conhecimento e uma das coisas que sempre nos perguntávamos era: onde estavam as mulheres negras e por que elas não participavam?

Eu lembro de conversar com uma amiga feminista branca e questionar como a gente poderia fazer para “se tornar amigas” de mulheres negras. Sim, um dos indicadores frequentes do racismo é o de como não convivemos com pessoas negras que não estejam em posições subalternas. Amizades e laços de afeto mais profundos costumam ser poucos.

Mas o que fazer a respeito?

Comecei a seguir pessoas negras nas redes sociais e a ler sobre feminismo negro o máximo que eu pude. Quis compreender, ser aliada, estar junto. Mas não sabia como. No início foi muito difícil. Foi estranho mesmo. Eu lia coisas como “branquitude”, “sinhá”, “palmitagem”, “feminismo heterogêneo” e me sentia um pouco magoada e ofendida. Percebi que nestes momentos minha vontade instintiva era me defender, fazer um contraponto e explicar que “nem toda branca…”

Sim, eu era e estava sendo muito racista.

A essa altura meu feminismo começava a ser interseccional e minhas leituras estavam se ampliando. Até que um dia eu me vi muito incomodada com o discurso de uma blogueira negra e resolvi fazer um comentário refutando o que ela estava dizendo. Mesmo que eu compreendesse o que ela estava dizendo, “talvez ela não tivesse entendido que…”

Eu continuava com o argumento de “nem toda branca?”, aliado ao “acho que você não entendeu?”. E pensei: quer dizer que branquitude é prima de primeiro grau de masculinidade, então? Sim, eu era e estava sendo muito racista.

O racismo é estrutural, é sobre poder.

Eu demorei a escrever sobre esse processo porque quis respeitar meu lugar de escuta, além de entender que o protagonismo não é meu. Demorei por medo de falar absurdos, de não ser compreendida. Mas me lembrei de Djamila Ribeiro e de como ela nos convida a discutir o racismo pelo viés da branquitude. Precisamos desistir privilégios e aguentar as consequências dessa exposição para falar de algo que nos expõe socialmente.

Silvio Almeida diz: “O racismo está relacionado a todas as formas de desigualdade!” O racismo é estrutural, é sobre poder. É sobre exclusão de espaços e colonização do conhecimento. E é urgente que nós brancas e brancos reconheçamos o nosso papel e a nossa contribuição (muitas vezes velada) nisso tudo. Eu li um texto de uma mulher branca elogiando uma negra por ela “saber se posicionar e defender uma causa sem agressividade e com muita classe”. Gente, isso é racista demais.

Hoje eu quero falar para as mulheres brancas porque você pode estar no processo de se perguntar “o que mais você pode fazer além de ser uma fofa querida que compartilha #somostodas”? Você pode estar achando tudo bem pedir #maisamorporfavor. Você pode até ter citado como Dr. King era melhor que Malcom X pois acreditava na mudança “sem violência”. Provavelmente, ontem você citou Mandela e como ele deixou o ódio dentro da prisão para poder realmente mudar o mundo. Como gostamos de negros não raivosos, não é?

Me descobrir racista e racializar as questões de gênero e classe foi o que mudou minha relação com o feminismo.

Tempos atrás, uma página do Facebook postou um vídeo em que duas amigas, uma negra e uma branca achavam que eram irmãs gêmeas. Muitas pessoas compartilharam achando a “coisa mais fofa do mundo”o como “elas não enxergavam nada além do ser humano”. Isso é muito problemático. Elas podem se acharem gêmeas e serem as melhores amigas irmãs da vida. Elas não são vistas como iguais. Amor e afetividade não é suficiente para impedir que a menina negra sofra as consequências diárias do racismo.

Eu acho que o pior caminho para combater racismo, machismo ou qualquer outra opressão é negar que ele existe e entrar no discurso de colorblindness. Lidar com meu racismo diário, que se apresenta em várias situações que me são postas para reflexão dói e é incômodo. E é a única saída para mudarmos as coisas: enfrentar a opressão de que nós mesmas desfrutamos. Porque sim, se há privilégios, há opressão e há oprimidos. Fingir que isso não existe não nos levará a lugar nenhum.

Aliás, se tem uma coisa que o privilégio traz é essa: eternas chances para “ser melhor”.

Com o privilégio vem a responsabilidade. É assim com os homens, é assim com os ricos, heterossexuais e é assim com os brancos. Nós temos todo tempo do mundo para a nossa desconstrução, mas isso não quer dizer que não podemos e devemos ser questionados ou responsabilizados quando formos racistas ou problemáticos.

Aliás, se tem uma coisa que o privilégio traz é essa: eternas chances para “ser melhor”. A verdade é que não é papel do oprimido ensinar o opressor a melhorar. Precisamos parar de ser violentas exigindo isso de mulheres e, principalmente, de mulheres negras. Ninguém nasce “desconstruidona”, mas as manas brancas também precisam entender que não é papel nem função de mulheres negras serem didáticas e pacientes com falas que no fundo são apenas violentas.

Eu sei que é chato nos vermos como opressores, que é um processo sofrido nos enxergarmos nós, feministas, humanistas, bonitas, gratidão, zen, pachamama, maninhas goodvibes como racistas que somos. Não é fácil, é desagradável, mas isso não é sobre nós.

Me descobrir racista e racializar as questões de gênero e classe foi o que mudou minha relação com o feminismo. Compreender que não há feminismo que não passe pelas mulheres negras, que o racismo se manifesta de formas tão perversas que não tem nem como nós brancas imaginarmos metade delas, que de boas intenções o inferno está cheio e que, como disse brilhantemente a Ana Paula Xongani “errar, pedir desculpas e ser desculpado é um privilégio branco (e masculino)” mudou a forma como enxergo toda a militância e o mundo.

O primeiro passo foi questionar e derrubar a universalização do sujeito. O sujeito não é necessariamente branco tanto quanto ele não é necessariamente homem, ocidental, etc. Universalizar os sujeitos é necessariamente violento e cruel.

O segundo passo foi o mais difícil: simplesmente calar a minha boquínea e compreender que eu precisava apenas ouvir e aprender. Ler e estudar muito ,porque aquele (o feminismo negro e as questões de raça) eram um universo inteiro que eu desconhecia e que eu jamais compreenderei por completo pois nunca terei a vivência de uma mulher negra.

Terceiro, eu passei a sempre dar o benefício da dúvida para feministas negras nas tretas.

Sempre.

Aliás passei a perceber que quando alguém era acusado de “linchamento virtual” e de estar “dividindo a esquerda” esse alguém era uma mulher e negra. E quase sempre ela está pontuando problemas em falas de homens e/ou mulheres brancas.

Antes de qualquer coisa eu pensava: tem angu nesse caroço. Para elas estarem problematizando é porque tem coisa. Bora ler. A maioria das vezes, a branquitude estava de “mimimi”, a problematização era necessária e o exercício era maravilhoso.

Coerência e empatia é olhar para a causa dos outros da mesma forma como a gente olha para a nossa. Empatia é também não minimizar a fala de ninguém e não ficar escolhendo aquela que se adequa mais ao que nós gostamos ou o que nós consideramos chato ou mimimi.

Outro argumento frequente é “o gasto de energia” que poderia ser despendido com “outras coisas mais importantes”. Então eu, mulher branca privilegiada me pergunto: mais importantes para quem? Não é a mesma “lógica” aplicada o tempo todo às “minhas questões” (igualdade de salários quando o desemprego deveria ser mais importante, legalização do aborto quando a fome deveria ser mais importante, etc etc…).

Sempre há algo “mais importante” simplesmente porque, como diria um amigo: “os meus problemas são mais importantes do que os seus, simplesmente porque são meus”. Eu parei de me perguntar o que eu precisava fazer para “ter mais amigas negras” e passei a me perguntar o que eu deveria estar fazendo para usar ativamente meus privilégios e meu lugar de fala. E fiz.

Por falar nisso, quando eu li o livro O que é Lugar de Fala?, da Djamila Ribeiro, eu já a acompanhava há um bom tempo nas redes sociais. Então, comprei vário livros para sair presenteando as pessoas porque eu sabia que, nas mãos certas, ele seria transformador como estava sendo para mim.

O segundo livro da Djamila, Quem tem medo do feminismo negro?, foi o itém número 1 da minha wish list de aniversário. Eu simplesmente continuo ouvindo, lendo, aprendendo, me apaixonando mais e mais por tantas mulheres inspiradoras e incríveis.

Ler e seguir mulheres negras se tornou um hábito. Elas são simplesmente maravilhosas. Elas enxergam o que nós brancas não enxergamos e, cada vez mais, acredito que a revolução só virá quando as mulheres negras estiverem realmente emancipadas.

No livro, Djamila cita a escritoa Bell Hooks sintetizando a importância do feminismo negro para o debate político:

“É essencial para o prosseguimento da luta feminista que as mulheres negras reconheçam a vantagem especial que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e faça uso dessa perspectiva para criticas a dominação racista, classista e sexista, para refutá-la e criar uma contra-hegemonia. Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa.”

Pra cada mulher negra na minha timeline falando sobre branquitude e racismo, tem cinco homens brancos (e também mulheres) falando sobre seu direito de falar, fazer, ser. Explicando conceitos. Apropriação. Cultura. “Dando aula” das raízes sociológicas do turbante, citando Mandela, elogiando as mulheres “mansas”. E denunciando como tudo isso de lugar de fala está sendo usado de alguma maneira contra as suas liberdades.

Como elas ameaçam. Como elas provocam. Que medo eles têm delas, que instinto disciplinador que elas atiçam quando falam. Que potência! É com elas que eu quero andar no recreio. É do lado delas que eu quero estar numa treta. Ah, e sobre as amigas negras, sabem o que eu descobri? Que quando a gente troca afeto, quando a gente conversa e ouve de verdade, não no lugar de “vem aqui que vou te ajudar”, a amizade surge naturalmente.

Com carinho, risadas gostosas, trocas de confidências e áudios de 9 minutos. Falamos do boy, da roupa, das tretas e, claro, também de racismo, machismo e luta. Gratidão às minhas amigas pelo aprendizado diário e pela paciência! Em especial à maravilhosa diva Brinsan Ferreira N’Tchalá que me enche de amor e de inspiração sempre e provavelmente de outras vidas!

“Feminismo sem interseccionalidade é apenas supremacia branca.”

E aí?

“O seu feminismo olha de frente para o seu racismo para incluir as mulheres negras?”
(Stephanie Ribeiro)

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