[Afrofuturismo] O futuro é negro o passado e o presente também

Muito mais que uma estética da moda, Afrofuturismo é, acima de tudo, o poder nas nossas próprias mãos

Por Fábio Kabral, no Médium 

Afrofuturismo! Parece ser uma das “sensações” do momento; muita gente querendo saber sobre, muita gente buscando referências sobre, muita gente atrás de pessoas que possam falar sobre. Ao que tudo indica, organizadores de eventos literários, musicais e de arte em geral, cada vez mais, correm atrás de escritores, artistas e profissionais que possam elucidar acerca da questão, na ânsia de atender à crescente demanda pela temática afrofuturista por parte de uma fatia cada vez mais crescente do público.

Mas o que diabos é esse tal de Afrofuturismo que tanta gente quer saber? Quando começou? O que é? Como é que eu faço? Como é que se faz pra ser um afrofuturista boladão?

Ora essa. Afrofuturismo somos nós, pessoas de pele preta. Simples assim.

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Mwana Ngana Ndumba Tembo — Monarca Tchokwe (1840–1880). Nós somos presente, passado e futuro.

As pessoas negras sempre contaram as suas histórias. Sempre lutaram pelo seu presente, honraram seu passado e projetam o seu futuro. O que ocorreu, em algum momento, é que o pessoal pálido do norte resolveu bagunçar tudo e tomar tudo pra si, dando a impressão de que ninguém faz mais nada além dos pálidos.

Aliás, a expressão “Afrofuturismo” foi cunhada por um cara branco. Quando Octavia Butler seguia pisando firme no mundo escrevendo romances e mais romances e séries inteiras de ficção científica, quando Samuel Delany já havia publicado cinco romances antes de completar 23 anos de idade, quando Sun Ra abria as portas do Cosmos com sua psicodelia musical, um cara branco chamado Mark Dery resolveu, em 1993, rotular de “Afrofuturismo” o que essas mulheres e homens negros vêm produzindo desde o início dos tempos.

“Bróder. Escrevi todos esses livros aqui e você vem me rotular de se lá o quê? Se liga!” — BUTLER, Octavia

Para ser sincero, eu não gosto dos termos “representatividade” e “inclusão”; de um lado, há aqueles que odeiam tudo que eles chamam de “politicamente correto” (seja lá o que essa idiotice significa); do outro lado, aqueles que levantam a bandeira da aclamada “diversidade” e representatividade como se fosse uma festa, uma turminha de pessoas felizes que se dão as mãos como se fôssemos todos iguais.

Somos todos iguais sim. Ao mesmo em que não somos.

Cheikh Anta Diop, uma das maiores referências do movimento pan-africanista, dizia, com convicção, que raças não existem, pelo menos não num nível biomolecular; ele dizia que um finlandês e um zulu poderiam ser mais geneticamente próximos entre si do que entre seus respectivos povos; no entanto, na África do Sul da década de 80, o finlandês seria um homem livre, enquanto o zulu seria mais um integrante da maioria violentada e massacrada pelo apartheid. Dessa forma, Diop dizia que os brancos costumam negar a realidade das raças, ao mesmo tempo em que tentam destruir as outras raças.Concluímos então que, geneticamente, não há raças; ainda assim, a noção sociocultural e fenotípica de raças ainda define de forma decisiva a maioria das relações humanas até hoje.

Dessa forma, independentemente de gostar ou não do termo,representatividade importa sim, e muito.

Jamila The Teenage Terminator by ~jinfeng. Uma simples imagem que me inspirou na criação dum universo inteiro…

A atual concepção sobre Afrofuturismo, a que figura na maioria das matérias sobre, é mais ou menos a seguinte: um movimento artístico que combina elementos de afrocentricidade, ficção científica, ficção histórica, ficção fantásticae realismo mágico-animista com cosmologias de inspiração africana com o intuito de denunciar os preconceitos atuais sofridos pelas pessoas negras, bem como questionar, reimaginar e reinventar os eventos históricos do passado. É essa a definição plastificada, repetida por matérias e sites gringos. E devo dizer que não gosto dessa descrição, pois, pra mim, Afrofuturismo vai muito além disso. Vai muito além de um rótulo espetaculoso.

Por um lado, é preciso dizer que é leviano encarar afrofuturismo como “exótico”, a novidade do momento, mais uma “atração” para compor a Grande Festa da Representatividade. Não há nenhuma festa aqui. O que há são pessoas pretas, mulheres e homens, pisando firme no mundo pelo simples direito de viver como bem entendem, e de se expressarem para o universo da forma que bem desejam. E isso nós sempre fizemos e para sempre faremos, não importa a época, não importa qual nome pomposo inventem para o simples movimento que realizamos.

Pintor Joshua Mays e seu trampo. Nós contamos a nossa própria história.

Já numa outra ótica, considerando esta realidade atual de supremacia cultural, econômica e filosófica imposta pelo mundo branco, cujos movimentos ficcionais em livros, gibis, filmes e videogames são dominados majoritariamente pela ótica europeia, o esforço em romper com esse imaginário, encontrar a sua própria história através do seu próprio ponto de vista, a dedicação aos estudos da afrocentricidade, a busca pelas raízes, o foco na difusão do imaginário de inspiração africana, o desejo de ter como referência seus ancestrais africanos, o estudo das concepções filosóficas e culturais elaboradas pelos nossos, e não pelo outro, todo esse movimento em transformar o presente, recriar o passado e projeto através da nossa própria ótica é, para mim, a própria definição de Afrofuturismo.

Dessa forma, ainda que eu não goste de rótulos, à luz da conjectura atual, o rótulo se torna necessário, para facilitar a comunicação e união entre os nossos.

Miles Morales, o Homem-Aranha. Somos heróis com rosto africano.

“Lidos apropriadamente, os mitos nos deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam a lidar com as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o nosso relacionamento com a sociedade. Quando enfrentamos um trauma, individual ou coletivamente, as lendas e os mitos são uma maneira de restabelecer a harmonia à beira do caos”.

Em seu livro “Herói com rosto africano”, o terapeuta e quimioterápico afro-americano Clyde W. Ford versa a respeito da importância dos mitos e lendas de inspiração africana. Segundo Ford, é imprescindível para os afrodescendentes, no seu resgate à sua autoestima, entender o vitória do herói com rosto africano como um triunfo sobre as forças internas que nos movem, para o bem ou para o mal; as transições pelas quais atravessamos — nascimento, amadurecimento, conquistas, entraves, prazer, dor, crescimento, morte — são simbolizadas nas inúmeras histórias do Continente, passadas de geração a geração, histórias desconhecidas por muitos de nós devido ao processo de aculturação e apagamento. Nesse livro, Ford nos agracia diversas lendas da África Subsaariana, histórias de triunfo e poder, maravilha e espanto, cujos arquétipos e estereótipos são imediatamente reconhecidos por nós, uma vez que são muito anteriores aos mitos europeus, que mais tarde viriam a se apropriar desses símbolos para contar como se fossem seus próprios; por exemplo, é no mito basuto de Lituolone, a garota que nasceu sem ajuda da semente masculina e que venceu sozinho a grande serpente Kammapa que havia devorado o mundo, a noção do herói nascido de parto virginal, com grandes poderes mágicos, e que no fim é sacrificado por aqueles que salvam e dessa forma ascende à divindade. Há inúmeros exemplos que eu poderia citar aqui; mas basta dizer que os conceitos metafísicos e imaginários promovidos por este livro são tão poderosos e me marcaram de tal forma que “herói com rosto africano” é o meu mote até hoje.

Uma aldeia do game camaronês Aurion: Legacy of the Kori-Odan. Nossos vínculos com o espírito transcende o tempo.

“O papel do espírito é o de guia que orienta nossos relacionamentos para o bem. Seu propósito é nos ajudar a ser pessoas melhores, a nos unir de forma manter nossa conexão não apenas com nós mesmos, mas também com o além. O espírito nos ajuda a realizar o propósito da nossa própria vida e a manter nossa sanidade”.

Sobonfu Somé, em seu livro “O Espírito da Intimidade”, nos ensina a respeito da importância de alimentarmos nossos vínculos com o espírito. Para o afrofuturista, é importantíssimo resgatar esse vínculo com a sabedoria ancestral das nossas anciãs e anciãos da aldeia. Na aldeia, aprendemos a respeitar nossas ligações com o mundo natural e com a nossa comunidade. Projetando um futuro heroico de inspiração africana, o afrofuturista fortalece esses vínculos, com o intuito de apresentar alternativas que realmente curem os nossos e que privilegiem relacionamentos saudáveis tanto para a nossa comunidade como para nós mesmos. Portanto, de nada adianta criar um futuro que seja meramente uma imitação das relações danosas de romances iludidos tais como nos é imposto atualmente pelo Ocidente; o afrofuturista deve ir além disso, apresentando propostas que realmente contemplem os anseios das memórias ancestrais que permeiam nossas almas.

Eu poderia citar inúmeros outros exemplos de pessoas pretas à frente de seu tempo — na verdade, farei isso sim, em artigos futuros. Na verdade, meu grande mano Augusto Oliveira, ele mesmo um afrofuturista de mão cheia, diz que “toda pessoa preta é uma pessoa deslocada de seu tempo”, devido ao processo de diáspora no qual fomos sequestrados do nosso seio e dispersados em terras estranhas, longe das nossas tradições e do nosso imaginário. Augusto reverencia grandes artistas como Nina Simone, essa mulher poderosa que enfrentou dificuldades inúmeras e agraciou o mundo com seu talento sem igual — graças à indicação do mano Augusto, também virei fã e inclusive por um acaso estou ouvindo no momento em que escrevo isto. Da mesma forma que virei fã de Sun Ra, Janelle Monáe, Ellen Oléria e tantos outros músicos afrofuturistas que filosoficamente e organicamente buscam esse reencontro ancestral — “a partir da consciência da elaboração do mundo dos sonhos, da ficção, e eu acredito que um texto poético cheio de metáforas nos aproxima da ficção, o afrofuturismo explora um novo futuro para a raça negra” — diz Oléria.

“Quando disseram que a Europa inventou a ciência, ele escreveu nas margens que isso era mentira. Quando disseram que os africanos eram inferiores e não tinham filósofos, ele escreveu nas margens que isso era falso. Quando eles disseram que a Europa originou a civilização, ele escreveu que os europeus haviam falsificado a história.” — ASANTE, Molefi Kete.

O que pode ser dito sobre Afrofuturismo não se esgota aqui; trata-se apenas de uma modesta introdução. As possibilidades são inúmeras. Dos nossos mais velhos aos nossos mais novos — tais como a talentosíssima Maria Freitas, da página O Mago Rosa — muita coisa boa foi produzida e muitas maravilhas ainda estão por vir. Vamos estudando, vamos nos informando, vamos trocando informações, vamos nos fortalecendo. Nós podemos contar nossas histórias por nós mesmos, não dependemos que ninguém faça isso por nós — nem do lado que nos nega sempre a presença e tampouco do lado que deseja nossa presença como algo espetaculoso e exótico. Nós sofremos grandes violências diárias, físicas e psíquicas, e ainda assim estamos aqui. Nós somos capazes de vencer o trauma histórico e projetar nós mesmos nosso próprio futuro brilhante. Por meio de nós, descendentes do Continente, os sonhos dos ancestrais se tornam realidade.

Capa do livro de Ytasha Womack. É apenas o início…

“O sonho é mito coletivo. O mito, um sonho pessoal”.

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BIBLIOGRAFIA & REFERÊNCIAS:

FORD, Clyde W. — “Herói com rosto africano”

SOMÉ, Sobonfu — “O Espírito da Intimidade”

NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.) — “Afrocentricidade — Uma abordagem epistemológica inovadora”

ASANTE, Molefi Kete — “Afrocentricidade e uma abordagem para a paz no mundo”

BUTLER, Octavia; RA, Sun; DIOP, Cheikh Anta; SIMONE, Nina; MONÁE, Janelle; OLÉRIA, Ellen; OLIVEIRA, Augusto; FREITAS, Maria; vários outros artistas de diversas esferas; meus Orixás; diversos personagens lendários e ficcionais de rosto africano; amigos, família; gibis, games, livros, filmes, RPG; o Continente; o mundo; a vida.

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