Airbnb e Uber mostram como funciona o racismo na era digital

Por Tulio Custódio, para Revista Galileu

A gerente de hotelaria Daniela Vasconcelos aproveitou o feriado do Réveillon de 2016 para visitar o Rio de Janeiro ao lado de seu namorado, o designer gráfico Silvestre Rodrigues. Para escapar dos preços proibitivos dos hotéis durante a alta temporada, ela pesquisou casas e apartamentos disponíveis no Airbnb. Ao contatar o dono da residência selecionada, recebeu a resposta de que o espaço já estava reservado — no site, o imóvel continuava vago.

Ela, então, pediu ao namorado para fazer a mesma consulta com o anfitrião. O dono da casa afirmou que o aluguel estava disponível. Daniela é negra e Silvestre é branco. “Minha reação foi de tristeza por saber que uma pessoa me definiu pela cor da minha pele, pelo meu cabelo, por meus traços”, diz a jovem de 26 anos. “Meu namorado e eu ganhávamos praticamente o mesmo salário, e pensei: meu dinheiro é diferente do dele por ele ser branco e eu, negra?”

Esse não é um exemplo isolado. Nos Estados Unidos, casos de racismo no Airbnb levaram à criação da hashtag #AirbnbWhileBlack, campanha promovida pela ONG ShareBetter que denunciava como a experiência de negros ao utilizar o serviço de hospedagem era diferente daquela experimentada por brancos. O caso mais famoso é o de Glen Selden, um publicitário negro norte-americano que teve seu perfil negado ao tentar alugar um quarto pelo site. Logo depois, ao criar uma conta em que fingia ser um homem branco, foi aceito no mesmo lugar.

Em pesquisa conduzida pela Harvard Business School em 2015, usuários que possuem nomes “reconhecidos” como da comunidade afro-americana têm uma chance 16% menor de conseguir aprovação de um pedido de reserva no serviço. Símbolo de um capitalismo mais humanizado, a economia compartilhada mostra que não está imune às discriminações baseadas em preconceitos de raça, classe e gênero. Casos como o de Daniela Vasconcelos e Glen Selden não são problemas isolados e fazem parte de uma estrutura social historicamente racista e excludente.

A REPUTAÇÃO É JUSTA?

Casos de racismo não estão restritos ao Airbnb. O empresário Ian Black afirma que, ao solicitar um carro por meio do Uber, são muitas as ocasiões em que o motorista fica à procura de um usuário “mais branco” no local solicitado para iniciar a viagem. Ele também relembra um caso que aconteceu neste ano e ilustra as contradições da economia colaborativa: “Entrei em um Uber Black [versão do aplicativo que oferece carros de luxo], e o motorista era negro. Passaram poucos minutos do início da viagem e ele me disse:
— Posso fazer um comentário? — Claro, amigo.
— Já fiz mais de 170 corridas no Uber e você é o primeiro negro que transporto…”

Apesar de ser uma indústria que mobiliza cerca de US$ 3,5 bilhões, segundo dados da revista norte-americana Forbes, a utilização de serviços de transporte como o Uber ainda é pouco frequente entre usuários mais pobres no Brasil. Para os negros, que representam 53% da população, o abismo econômico é ainda maior: dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que o rendimento médio de pessoas negras e pardas em regiões metropolitanas é de R$ 1.374, enquanto o de uma pessoa branca é de R$ 2.396.

Ainda que o acesso econômico seja uma barreira para a utilização desses serviços, as práticas discriminatórias representam o maior problema. Afinal, as empresas de economia compartilhada fundamentam o funcionamento de suas plataformas na reputação dos usuários: as avaliações qualitativas são fornecidas com base na experiência de quem oferece um serviço ou de quem o contrata. O problema é que, nos casos de racismo, a “reputação” é formalizada antes mesmo de a experiência começar.

Depois da mobilização de usuários contra os casos discriminatórios no Airbnb, a empresa afirmou publicamente que resolverá essas questões para tornar seu atendimento mais inclusivo e aberto à diversidade. Enquanto isso, outros serviços vão ganhando espaço, como o Travel Noire, o Innclusive e o Noirbnb. Essas iniciativas prometem a possibilidade de acesso aos negros sem os problemas decorrentes da percepção preconceituosa. Outra possibilidade estudada para a diminuição de casos de discriminação envolveria mudanças na maneira de apresentar os usuários nas plataformas dos aplicativos, prevenindo o olhar preconceituoso e prejulgamentos de anfitriões ou motoristas.

Obviamente, o racismo não é uma característica exclusiva do capitalismo. Esse sistema econômico, no entanto, foi beneficiado pelas características desiguais criadas pela exploração do trabalho ao longo dos séculos. No Brasil, essa realidade é ainda mais perceptível, já que basicamente todo o capital aplicado e investido na industrialização e modernização do país tinha relação direta com os ganhos gerados pelo sistema escravista, existente por mais de 300 anos por aqui. No anoitecer do século 19, em 1888, o Brasil foi a última nação a declarar a abolição da escravatura — o que ainda produz consequências profundas em relação ao desenvolvimento da sociedade e, principalmente, à percepção de direitos e privilégios. Não é de surpreender, portanto, que novas iniciativas econômicas ainda encarem
velhos problemas sociais.

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