Muitos autores, como Liev Tolstói, Graciliano Ramos e J. M. Coetzee, se debruçaram sobre suas memórias de infância para construir grandes obras ficcionais e memorialísticas. Esse também é o caso de “Aké: Os Anos de Infância”, de Wole Soyinka, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 1986.
Autor de ensaios, poemas, romances, peças teatrais e memórias, Soyinka tem uma carreira premiada por sua vasta obra que tem como centro e paisagem a sua Nigéria natal.
Em “Aké”, Soyinka nos conduz à Nigéria dos anos 1930 e 1940, o tempo de sua infância. Aos poucos somos convidados a adentrar a atmosfera prosaica de Abeokutá, no oeste do país, a partir da vida de um Soyinka inquieto, curioso e contestador.
De imediato, conhecemos o seu universo familiar –o pai, um intelectual a quem “poucas pessoas chamavam pelo nome” é “batizado” pelo menino de Ensaio. Sua formalidade representava à criança “um daqueles meticulosos exercícios estilísticos de prosa que seguem regras exatas de composição”; a mãe, por sua vez, graças ao peso de sua religiosidade e rigor educacional, é apresentada como a Cristã Impetuosa.
A Nigéria de então era um país colonizado e que devia obediência à Coroa britânica. Essa paisagem por diversas vezes atravessa a história, demarcando as contradições do colonialismo e tornando mais visível a fricção entre a tradição e a dita “modernidade”.
É nesse ambiente que Soyinka narra o seu gênio precoce. Com menos de três anos ele se dirige à escola com alguns livros do pai para aprender a ler. Aos cinco, ele segue uma banda até outra cidade. Sobressai nos muitos episódios narrados o seu espírito irrequieto, sempre contestador, o que o torna um personagem carismático a quem seguimos pelas lembranças narradas como aventuras.
Uma das passagens mais marcantes é o tempo da Segunda Guerra e a onipresença do “vilão” Hitler na vida de uma criança africana. A iminência de um ataque e as notícias do combate se misturam à presença de um homem vestido como oficial do Exército no quintal de sua casa.
“Nós fugimos. Nunca tínhamos passado por nada desse tipo, e, com todos os avisos sobre a guerra, não havia dúvidas de que Hitler realmente havia chegado e estava pronto para nos vender como escravos.”
Escondido com os primos no forro do telhado, eles se indignam com “Hitler” urinando no reservatório de água e o decidem agredir, até que a chegada dos pais esclarece o mal-entendido.
Outro momento relevante é a história do levante de mulheres, do qual sua mãe fez parte, principalmente contra as injustiças coloniais, como os altos impostos sobre as propriedades rurais.
“Em algum momento, muito mais tarde, ouvimos falar da União das Mulheres da Nigéria. O movimento das oníkaba, iniciado ao redor de xícaras de chá e sanduíches para resolver o problema das noivas que não seguiam as normas sociais, estava se tornando popular e nacional. E se entrelaçou ao movimento que buscava pôr fim ao domínio dos homens brancos sobre o país.”
Há em “Aké” uma inegável influência proustiana, mas Soyinka vai além, ao a conectar às raízes culturais de sua terra.
Além da riqueza de detalhes sobre a vida na primeira metade do século 20, o que faz desse livro uma bela crônica sobre o dia a dia na Nigéria colonial, a escrita de Soyinka é carregada de imagens líricas e ao mesmo tempo atravessada por um fino humor das descobertas de uma criança.
Uma excelente oportunidade para adentrar o universo de um dos mais importantes escritores africanos, quase desconhecido do público brasileiro.
Preço R$ 52,90 (264 págs.)
Autor Wole Soyinka
Editora Kapulana
Tradução Carolina Kuhn Facchin
Doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, é autor de “Torto Arado” (Todavia), vencedor do prêmio Oceanos e do Jabuti de melhor romance