Além do trabalho

Parece que não morrer de burnout é uma decisão individual, como fazer exercícios, poupar, comer bem. Mas é uma luta coletiva

FONTEO Globo, por Ana Paula Lisboa
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

Uma vez, estava no ônibus, voltando da escola, e ouvi uma conversa entre o cobrador e o motorista. (Minha idade é denunciada nesse detalhe histórico: cresci numa época em que cobrar a passagem e dirigir um ônibus eram profissões diferentes.) Sempre fui de prestar atenção em conversas alheias, todo escritor adulto foi uma criança fofoqueira. Pois bem, o que me marcou daquele diálogo e me assusta até hoje foi a frase:

— Agora só faltam 20 anos pra me aposentar.

Mesmo sendo ruim de matemática, fiz a conta rápido. Se para ele faltavam 20 anos, para mim faltariam pelo menos 40. Era mais.

Sempre tive a sorte de gostar da escola, mas odiava acordar cedo e não poder decidir sobre o que eu queria fazer do meu dia. Vivia exausta. Todos os anos, quando as aulas voltavam, eu chorava para levantar de manhã, e minha mãe dizia: “Depois acostuma.” Eu chorei por 12 anos e, no ensino médio, foi difícil não largar a escola.

Permaneci porque, além de adorar a escola e meus amigos, sabia que deixar de estudar seria automaticamente entrar no mundo do trabalho. Havia inclusive colegas que já faziam as duas coisas desde os 14 anos.

Sem que ninguém me dissesse, tinha a sensação de que a escola preparava a gente para o trabalho: não ter autonomia sobre o meu tempo, não questionar ordens e acordar cedo. Uma junção de coisas que eu odiava.

Eu adiei o trabalho formal o quanto pude e, das poucas vezes em que foi impossível fugir, eu levava a minha cabeça pra longe, executava bem o que precisava fazer, mas sabia internamente que aquilo era um período transitório. Trabalhei um ano na escala 6×1 e sem dúvida aquela foi a fase mais difícil.

Hoje, apesar de tudo (e “tudo” é tudo mesmo!), minha maior alegria é ter construído certa autonomia no meu trabalho, algo parecido com o que queria na época da escola. A menina que ainda vive em mim celebra isso. Não sou nenhuma dona Helena, mas, quando posso e preciso, cancelo a agenda da tarde.

Desde 2020, a necessidade de ver a vida para além do trabalho ficou mais intensa. Entrar em processos de sobrecarga para mim é muito fácil. Apesar da minha escala não ser forçadamente 6×1, às vezes faço 7×0, e me percebo num buraco.

Cresci ouvindo “depois acostuma”, porque, para os meus pais, acostumar era a única forma. Foi preciso tempo para perceber que o processo de reconhecimento (e constante cura) não é individual, mas coletivo. É uma ferida coletiva que me faz trabalhar além da conta, por achar que essa é a única forma de se redimir. É uma dor coletiva achar que a qualquer momento alguém vai bater na porta e me tirar o direito de cancelar a agenda da tarde, porque, afinal, meu nome não é Helena.

Eu não sou a única que tem pesquisado, estudado, lido e até contratado consultoria para aprender a trabalhar melhor. Eu não sou a única preocupada em não morrer de burnout e ter mais tempo com as pessoas que amo.

O problema é que parece que o bem-estar virou uma decisão individual, assim como fazer exercícios todos os dias, ter dinheiro para investir, comer bem e ter a pele reluzente. Esta é uma luta coletiva, doenças físicas e mentais relacionadas ao trabalho são casos de saúde pública. Não importa a sua escala, se seu nome é Helena ou João das Couves: a precarização e a morte não podem ser a regra.

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